A mulher que vejo a alguma distância, enquanto almoço, está vestida para matar. Nós, os normais, debruçados sobre o nosso tabuleiro de cantina, vamos observando o andar de passerelle. Há olhares diferentes a segui-la: altas percentagens de testosterona, avaliação ambígua de algumas mulheres. Cabelo platinado, decote laranja pálido, saia mata-hari transparente, saltos altos agudíssimos. Uma agressão viva, um grito estridente por sobre o vozear arrastado do shopping. Principalmente os sapatos. Juro que nunca compreendi. Quer dizer, percebo o mecanismo que os determina, mas tenho dificuldade em aceitar que alguém acabe por se sujeitar a ele. A mulher afasta-se, mas os sapatos ferem-me ainda. Sem dúvida, uma mulher percebida, quer dizer, que é um ser percebido — Berkeley, Bourdieu, lá se me vai o almoço. Mas eis que dentro de mim chamam Sofia Coppola para receber o óscar. Ela vem de negro, vestido singelo de alças, caminha calma no seu centro de gravidade interior. Sapatos rasos negros, sapatilhas de ballet talvez, qualquer coisa assim plana como a terra que humanamente se habita. Com a inteligência da discrição. Querida Sofia. Posso acabar de almoçar em paz.
Saltos altos
Luís Mourão
9.6.06 |
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