A Leitora, no seu infinito particular (XXV)

- Ah, isso eu não sabia.
- São coisas antigas, Leitora.
- Mas deve ter sido uma experiência interessante.
- Diz antes elucidativa. Mesmo para um adolescente. Ou sobretudo para um adolescente, para dizê-lo com toda a propriedade.
- E tinhas tempo para isso?
- Arranjava-se. Duas tardes no clube de xadrez, duas tardes no clube de basket. Era fraquito em ambas as coisas, mas gostava de ambas as coisas.
- E então, sempre é como diz o Pacheco Pereira, o xadrez pensa-se com a cabeça e o futebol pensa-se com os pés? No caso do basket deve ser com as mãos, não?..
- Oh, o Pacheco Pereira... Fora das suas embirrações ideológicas e um pouco snobes, até gosto do homem. É como com o Vasco Graça Moura, a gente admira a cultura e uma certa veia filosófica, e fica siderado com algumas irrupções do nearthental.
- Mas não foi isso que eu perguntei, Luís...
- Pois não. Imagina então o que é um adolescente apresentar-se a treinos e ouvir o treinador repetir que o basket se joga com a cabeça. E havia um quadro para desenhar as movimentações, e um livrinho que levávamos para casa para estudar as jogadas. E treinos de carácter: um porque era demasiado agressivo e tinha de ser domado, outro porque era demasiado medroso e tinha de ser encorajado, outro porque se armava em carapau de corrida e tinha de aprender a jogar para o colectivo, e por aí fora. O melhor do treino eram os cinco minutos finais, quando o treinador guardava o apito e jogávamos fora dos cálculos.
- Pensavam vocês que jogavam fora dos cálculos...
- Claro, e visto desta distância é o mais delicioso. Fazíamos o contrário das jogadas programadas sem nos apercebermos de que estávamos a programar um nível mais alto.
- E o xadrez?
- Gostava. Era como uma sucessão de problemas de matemática, e eu gostava da matemática. E também havia livrinho e programação das jogadas. Depois tive de optar, porque não havia tempo para estudar ambas as coisas. Precisava de me mexer e de companhia, escolhi o basket.
- E as pessoas?
- Como, as pessoas?
- Com mais neurónios no xadrez?
- Mas tu já alguma vez leste ou ouviste entrevistas de jogadores de xadrez? Fora daquilo é o deserto ou a trivialidade. Com as excepções do costume, que exactamente por serem do costume há em todas as áreas.
- De modo que...
- De modo que mais xadrez para todos, mais futebol para todos, e o Pacheco Pereira que se acalme, que tem toda a razão quanto à obsessiva cobertura mediática do futebol, mas não precisa de vir com populismos elitistas a terreiro...
- Populismos elitistas?! Onde é que tu foste buscar essa, Luís?
- É esse teu peão que se vai transformar em rainha, minha cara Leitora. Como vês, estou muito enferrujado. Neurónios já sem reflexos de xadrez.
- Ou simples perda de neurónios...
- Vá, respeitinho pelos mais velhos, menina.

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