Nota mental

Se me permite dizê-lo”. Não é apenas uma fórmula de cortesia, mas logo o reconhecimento de que não tens ainda permissão para o dizer. Cala, espera.

Cão existencial 17

Ficamos então assim?
E seria possível de outro modo?
Mas achas que tudo o que aconteceu tinha de acontecer?
Depende. Na política, quase sempre deveria e poderia ter sido diferente. Mas no amor, quase sempre foi o que poderia ter sido. Ou até mais do que poderia ter sido.
Mais?..
Da ordem do improvável, quero eu dizer.
Ficamos então assim?
Ficamos.

Cão existencial 16

Envelhecer? Dantes dizia muitas vezes: estamos sempre a ponto de recomeçar. Agora vou dizendo: estamos sempre a partir do dia a seguir a tudo. O dia do silêncio, da limpeza dos destroços. Outros virão para erguer novas cidades, ou o que quer que seja que use erguer-se nesses tempos que virão. Mas mesmo que a construção comece agora, não serei já eu a fazê-la habitação. Nenhuma melancolia nisso, a não ser aquela que sempre existiu, mesmo quando a desconhecia em mim. Envelhecer? Que a minha companhia não te pese nem te distraia da vida que tens para viver.

Cão existencial 15

Sim, pode antecipar-se a dor. Podemo-nos preparar. Mas verdadeiramente não se sabe. Melhor, não se sente. Não temos imaginação suficiente para sentir a dor que ainda não veio. Se tivéssemos, creio que morreríamos instantaneamente de horror. Mas não temos. É tudo no momento, um combate nu em que quase tudo o que pensávamos ser ou ter como nosso de pouco vale. Vamos ao tapete mil vezes, e não há vitória possível. Apenas sobrevivência, por razões que nem sei se chegaremos a aprender completamente. Mas os que se arrastaram para fora da cena e recuperaram num lugar qualquer, reconhecem-se. Por exemplo, olham para as árvores daquela forma. Por manchas. Brilho cheiro rugosidades. Até não saberem mais o que é uma árvore. Ou ouvem uma música e dizem: é como passar a mão pelo pêlo do cão.

Cão existencial 14

Sabes, não estou muito convencido de que tu… percebes?..
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Certas coisas, tu sabes, são histórias intermináveis. Olha, eu até penso, como dizer, que são mais do que histórias intermináveis, são assim uma espécie...
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Não estás a ajudar nada, não sei se já reparaste...
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Sozinho não consigo levar um pensamento até ao fim. É por causa das queixinhas? Mas a série já está quase a acabar, bem podias ser mais amável com quem te aturou estes posts todos.
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Se é assim que queres...

Cão existencial 13

De auscultadores?
É a música da cura. September song, versão Lou Reed. Ora ouve:

Oh, its a long, long while from may to december
But the days grow short when you reach september
When the autumn weather turns the leaves to flame
One hasnt got time for the waiting game

Oh, the days dwindle down to a precious few
September, november
And these few precious days Ill spend with you
These precious days Ill spend with you

Tão antigo.
Mais antigo que a aspirina?
Isso não sei.
Mas mais antigo que deus, isso sei eu.
Nem te pergunto por essa teologia estranha.
Obrigado. Não é teologia e é tudo menos estranha, mas obrigado na mesma.
Curado?
Recolocado. Entre o One hasnt got time for the waiting game e o These precious days Ill spend with you.
A vida?
What else?

Cão existencial 12

Vamos lá a saber finalmente, se te queres matar porque não te queres matar?
Ora, deixa-te disso. Ouve antes aqui esta história.
Hum.
Esta mulher teve três namorados. Continuou com medo de ser beijada no pescoço. Depois teve outro namorado. Perdeu o medo de ser beijada no pescoço. Os outros namorados a seguir nunca perceberam que essa mulher teve algum dia medo de ser beijada no pescoço.
E?
O progresso existe. As pessoas fazem diferença. As circunstâncias ajudam. E por aí fora. Não parece, mas é uma história optimista.
Tu tens a certeza que estás bem?
Vista de perto, a vida é a epopeia dos pormenores.
Mas demasiados pormenores não é a vida transformada em saco de bagatelas?
Isso depende das mulheres, meu caro.
Só isso?
Bom, mais qualquer coisa, de facto. Mas não tem nome. Por isso, não compliques.
Eu?! Essa agora.

Cão existencial 11

E aquela coisa do dedo mindinho e da questão teológica?
Não tem relevância, e ainda por cima demora a explicar.
Então não quero.
Claro que não queres. E olha, sentes-te melhor?
Um pouco, sim.
O suficiente para acabarmos esta série?
Ah, isso não, aguenta mais um pouquinho.

Cão existencial 10

E a Leitora?
Já te disse, está de férias.
E os Multiplex?
Quando ela vier.
Mas tens ido ao cinema?
Sim, mas quando ela vier a gente fala.
E porque não comigo?
Porque é com ela.

Cão existencial 9

Que foi?
Nada.
Como nada? Se estás a olhar fixamente para mim.
Estava a ver se esticas o mindinho quando pegas na chávena.
Hum...
Não te preocupes, é apenas uma questão teológica sem relevância.
Teológica?
Depois explico.

Cão existencial 8

Mas como é possível? Tens tudo atrasado, tudo, absolutamente tudo, e dás-te ao luxo de cear a ver um episódio do Seinfeld?!
Não posso tomar mais aspirinas.
Então e deus?
Mas é por isso. Ou já te esqueceste que esta coisa é sobre nada?

Cão existencial 7

Tu já viste bem aquela laranjeira?
Qual?
Aquela ali, mesmo em frente.
Que é que tem?
Laranjas vermelhas, laranjas verdes, folhas de outono, folhas de primavera, um haste seca, uma haste bebé.
E então?
Está tudo a acontecer ao mesmo tempo, é tão, tão...
Mas não foi assim que contaste, deste-lhe uma ordem.
Foi para me defender do excesso. Devia ser dito num suspiro, que arrastasse de uma coisa para outra, vagarosamente confundindo sem apagar.
São sete horas, não devias tomar uma aspirina?
Estou a recuperar, não te preocupes.

Cão existencial 6

Lembras-te do absurdo? E se procurasses no passado?
É sempre um bom lugar para procurar essas coisas, concordo. Mas já passei a fase.
Eu dizia procurar abstractamente.
A puxar à metafísica?
É mais à metapsicologia, penso eu. Mas tenta assim:

A Nossa Vez

É o frio que nos tolhe ao domingo
no Inverno, quando mais rareia
a esperança. São certas fixações
da consciência, coisas que andam
pela casa à procura de um lugar

e entram clandestinas no poema.
São os envelopes da companhia
da água, a faca suja de manteiga
na toalha, esse trilho que deixamos
atrás de nós e se decifra sem esforço
nem proveito. É a espera

e a demora. São as ruas sossegadas
à hora do telejornal e os talheres
da vizinhança a retinir. É a deriva
nocturna da memória: é o medo
de termos perdido sem querer

a nossa vez.

Rui Pires Cabral, Longe da aldeia, Averno, p. 30

Gosto dessas coisas que entram clandestinamente no poema. Parece-me que por cada uma que entra clandestinamente no poema, sai outra subrepticiamente da nossa vida. Mas e só uma ideia, claro.
E olha, tens tomado as aspirinas?
Religiosamente.
E tem ajudado?
Amanhã de manhã já entro oficiosamente na ressaca.
Ainda bem, ainda bem.

Open road

Subscrevo ambos, caro Rui Bebiano, e à sua pergunta a resposta que me cabe é firmemente não. Tenho apenas um pouco mais de esperança nos moderados árabes — o que se vê na rua árabe não prova necessariamente que essa unanimidade fundamentalista exista fora dela. Mas independentemente disso, tento falar em relação ao islão com os mesmo matizes de linguagem que usamos, já com naturalidade, em relação ao cristianismo: que há vários, posições oficiais de cada uma das igrejas, práticas e posicionamentos diferenciados dos crentes, etc. Isso não quer dizer compreensão do fundamentalismo, apenas o seu isolamento.
Entre as consequências perversas do relativismo e o desejo de cruzada face ao “eixo do mal”, essa guerra entre “nós” e “eles”, o caminho é cheio de nuances e perigos. Como não concordar consigo em “que só a inteligência, o conhecimento e a honestidade […] permitem […] o assumir de posições complexas, bem mais difíceis de sustentar do que aquelas que identificam os pastores e orientam os seus rebanhos.”?

Velhos amigos

Encontro de velhos amigos, ontem, na Casa da Música. Entre si e a música que há muito praticam. Mas também meus, naquela simples acepção de que estão na minha vida há muito tempo. Foi bom reencontrá-los. Burton parece-me não ter perdido nada do fulgor que sempre teve, Corea já não se espraia como nos tempos desse encontro único com Hancock, a dois pianos. Mas continua a ser um compositor excelente, com a sua marca estilística inconfundível. E um homem divertido. De alguma forma, vamos os três envelhecendo bem. Isto já é ao lado da música? Diria que não, que é mesmo por dentro da música.

Cruzando

Caro Carlos Leone:

Tem razão, disse de facto que a minha posição não era boa política. E eu ia responder-lhe exactamente nesse sentido, mas depois o post tomou outro rumo, e deu outra coisa ligeiramente diferente. Mas posso retomar. Pensava dizer-lhe que aparte a legitimidade do seu juízo — até porque certamente serei mau em várias coisas, e política provavelmente será uma delas — pensava que a minha posição era “boa política” porque tentava não julgar o Islão como uma peça unívoca, nem procurar no Corão apenas a confirmação das leituras mais radicais que dele são feitas. Mas decerto estaremos de acordo sobre isto. Quanto ao que fazer “com quem activamente quer ser maligno”, acho que só vendo caso a caso. Tomo a legítima defesa como boa, e a legítima defesa começa na polícia e pode acabar na guerra. Gostaria era de, em consciência, poder dizer a mim mesmo que tudo se fez para evitar, passo a passo, a solução mais grave e mais custosa para todos.
Agora, conversas a três (esta a modos que já vai a quatro) é princípio de espaço público. Portanto, entre e continuaremos todos.

Caro Rui Bebiano:
Mas podemos ponderar se para além de tudo aquilo que devemos à Revolução Francesa, o caminho dela não começou a ser aberto, digamos assim, por um Erasmus. Ou dito de outra maneira: teria a Revolução Francesa ensinado tão extensamente os homens a mudar, para manter o raciocínio de Miguel Sousa Tavares, se esses homens já não se tivessem libertado parcialmente do jugo da Igreja a partir de dentro? Propondo outras leituras dos textos sagrados, apoiando neles a reivindicação de várias liberdades cívicas? Claro, tudo isto é para ir devagar e sem a polémica que afinal não há (e que o Rui Bebiano — a minha vénia — contorna quando não é estritamente necessária).

Cão existencial 5

Antes que perguntes: não, as coincidências não me convencem. Sabemos sempre de menos. Soubéssemos nós mais, e não haveria senão coincidências. Tudo o que existe é pouco, mas está sempre a existir, ou não haveria existência suficiente. Portanto, tem de estar sempre a coincidir.
Parece simples.
É simples.
Mas também parece estúpido.
Porque é estúpido.
Nesse caso...
A vida, queria dizer a vida.
Eu percebi, querias dizer nós.

Eles vivem, sem dúvida, e quanto aos outros convém não deixá-los morrer

Acho que aquilo que Rui Bebiano diz sobre os seus amigos católicos é um excelente exemplo de como nós, deste lado ocidental e sobre nós próprios, somos capazes de todos os matizes em relação àquilo que conhecemos razoavelmente bem — é um dever de inteligência, em quem a cultiva, claro. Rui Bebiano conhece amigos católicos que, embora abertos e tudo mais, ficam com alguns espinhos de fora quando se toca no Papa. Mas Rui Bebiano não desconhecerá a existência de outros católicos que, acerca do actual Papa, o mínimo que dizem é criticar-lhe a “voz de padreca”. Aliás — mas isto seria uma outra conversa, e longa — dou comigo a pensar que face a essas minhas amigas católicas — por acaso são todas mulheres, o que também daria uma outra e longa conversa — , o meu ateísmo discreto e tranquilo é, como dizê-lo?, pouco ateu...
Os matizes em relação ao que conhecemos, e que nos levam, em muitas questões, a falar da posição oficial da Igreja Católica em vez da posição dos católicos, dando por adquirido que há católicos, e muitos, que divergem em vários assuntos da posição oficial dos seus líderes, devíamos também procurá-los em relação ao mundo árabe. A famosa “rua árabe” faz-me lembrar aquelas manifestações de apoio ao Estado Novo — aquelas pessoas estavam mesmo lá, e exactamente naquele número. E depois, no 25 de Abril, foi o que se viu.
Isto não invalida tomar a sério a “rua árabe” e desmontar os seus slogans assassinos — mas implica também procurar na “cidade árabe” aliados para essa tarefa. De outro modo, estamos a condenar O árabe em bloco, o que me parece ser um erro político colossal (porque esta minha posição é política, Carlos Leone, os textos, literatura incluída, só me interessam porque dão sempre para outra coisa). Não vejo que Rui Bebiano discorde disto. Como bem afirma, o partir-se de um ponto diferente para começo de análise não quer dizer que não se tenha necessariamente de passar pelo outro ponto do qual não se escolheu partir. Certo que há privilégio no ponto de partida, e em termos do nosso trabalho intelectual ele determina os nossos instrumentos e o nosso labor específico — são os constrangimentos da especialização. Mas o que importa é para onde se converge. Aí, sem dúvida que somos benignos um em relação ao outro. Mas quero crer que seremos benignos para com qualquer um que não deseje o nosso extermínio ou não nos impeça de viver e pensar os nossos erros e acertos por nossa própria conta e risco.

Ratzinger não é a Bíblia nem Estaline é Marx

Sem dúvida, Rui Bebiano tem razão quanto ao meu interesse de análise, e deve ser pela junção de todas as razões que enuncia — tanto quanto o próprio o pode saber. Mas isso não significa que não me interesse vivamente pelo outro processo, o da transformação de vulgatas em programas ou filosofias de vida: não se pode falar de literatura contemporânea sem falar desse longo combate dos autores contra a estupidez das ideias feitas e das vidas vividas por imitação. E a estupidez e a imitação podem ser profundamente assassinas — nenhuma dúvida quanto a isso.
À partida, as nossas duas formas de abordagem não se excluem, até porque não se debruçam exactamente sobre o mesmo objecto — penso eu. Colocaria as coisas deste modo: Ratzinger ou Pio IX não são a Bíblia, Estaline não é Marx, a fatwa não é o Corão. Rui Bebiano interessa-se, e bem, sobre o modo como certas leituras de textos fundadores se substituem aos textos fundadores, reduzindo a sua ambiguidade, tornando-o palavra de ordem — palavra de ordem eventualmente assassina, até — e determinando modos de vida que sem dúvida fazem mundo. Alguma dúvida que Estaline faz isto a partir de Marx? A velha questão é: Marx é responsável por Estaline, ou Estaline criou o seu próprio Marx? Para mim, a resposta é inequívoca: Estaline criou o seu próprio Marx (sendo que obviamente eu não posso apontar o Marx ele próprio). O facto de existirem leituras marxistas anti-estalinistas constitui a prova. Isso não obsta à análise de Estaline e das suas vulgatas, antes pelo contrário, mas essa análise não é ipso facto uma análise de Marx, nem a condenação de Estaline constituirá automaticamente uma condenação de Marx.
E se isto é verdade acerca da relação Marx-Estaline, mais o será acerca da relação dos textos das grandes religiões monoteístas com os seus intérpretes. A fatwa é uma “leitura” do Corão: no que afirma, merece-nos a ambos um firme repúdio; enquanto leitura, não diria que ela traduz ou deixa de traduzir a verdade do Corão, confronta-la-ia com outras leituras e tomaria o partido das que se alinham pelo repúdio que ambos temos pelos conteúdos da fatwa. Do mesmo modo (embora por razões diferentes, claro) que não vou na companhia de Ratzinger, mas prezo, e muito, por exemplo, a companhia do Graal (Lurdes Pintassilgo, Isabel Allegro de Magalhães).
O que me preocupa é um certo tipo de desproporção na análise. Deste lado, para crentes e não crentes, é óbvio que não há o cristianismo mas cristianismos. Relativamente ao outro lado, dizemos com demasiada frequência o Islão. Deste lado, para a esmagadora maioria dos crentes e para a totalidade dos não crentes, o jardim do paraíso é uma metáfora. Relativamente ao outro lado, o jardim da guerra parece que pode ser tomado à letra. Ora, ressalvada a comparação, há criacionistas como há adeptos da fatwa: mas alguém cita o Génesis para acusar o cristianismo de criacionista?

Cão existencial 4

Tu lembras-te daqueles versos?
Quais?
Um desejo absurdo de sofrer, qualquer coisa assim.
O Cesário do sentimento dum ocidental?
Isso. Agora sei melhor porque é.
O desejo absurdo de sofrer?
Sim. É pelo futuro. Pelo que vem do futuro. Absurdo porque ainda não se sabe acerca de quê, e a palavra mais simples é ab-surdo, o que não se ouve nem se pode ouvir. Ainda. Mas é só dar tempo e o absurdo torna-se audível.
E a aspirina, tens tomado?
Religiosamente.
Isso ajuda, vais ver.

Usos & religião

De acordo no essencial, Rui Bebiano: a liberdade de expressão e discussão em qualquer matéria não pode estar em causa. Mas já não relegaria a intervenção “pouca diplomática” do Papa para uma nota de rodapé. O Papa não é um obscuro e desajeitado cartoonista, etc. Mas sobretudo, não leria desse modo o Corão, nem qualquer outro texto de uma religião monoteísta milenar.
Deixe-me pôr as coisas deste modo. Parto do princípio de que nenhum de nós é crente. Como não crente (mas há crentes que também lêem assim), leio todos os textos das religiões monoteístas como um interminável combate entre quem é “nós” e quem são os “outros”, entre as regras do amor que definem o “nós” e o tipo de guerra que se deve mover aos “outros” pelo simples facto de que a sua mera existência relativiza o absoluto do “nós”. Os termos deste combate não estão encerrados nem na literalidade do texto nem na sua exegese filológica ou historicista, mas na interpretação contínua com que a comunidade dos crentes se vai apropriando deles. Numa palavra, no seu uso. Nesse sentido, acho que pouco adianta citar directamente do Corão para mostrar preto no branco a brutalidade com que se persegue os outros. Ela está lá, como está em todos os outros textos, sob outras formas. O interessante, e estratégica e politicamente mais relevante, penso que seria procurar alguns usos em que o aparente sentido literal destes textos é reconstruído numa vivência que está conforme à defesa que fazemos das liberdades fundamentais. Ou seja, procurar apoio na exegese daqueles a quem chamamos os moderados árabes. Com outra estratégia, corre-se perigo de guerra religiosa. E as guerras religiosas, como qualquer outra guerra, podem ser ganhas, mas o seu preço é particularmente alto. Claro que nada disto põe em causa que nos mantenhamos firmes na defesa do essencial — isso que permite que estas palavras existam aqui e agora.

Cão existencial 3

Fez efeito, a aspirina?
Vou tomar outra ao almoço.
Mas isso é gripe ou?...
Tudo junto e nada disso. E por favor não metas deus ao barulho, já bastou o Papa e o Islão e as notícias.
Por falar nisso...
Acho assustador que o Papa tenha ficado surpreendido com a reacção às suas palavras, se é isso que queres saber. Uma vez Papa, em todo o lugar Papa. Como aliás qualquer Chefe de Estado ou líder partidário. Como é possível que não perceba isso?
Mas a citação...
Diz-me quem leu e em cuja leitura eu confio, que a citação até não está lá a fazer nada, não faz andar o argumento. Mas está lá, e só um ingénuo pensaria que neste contexto ela pudesse passar despercebida. Não digo que não tenha razão no argumento, embora quanto a guerras santas haveria muita auto-penitência a fazer. Mas o Papa tem que escolher se quer o ataque ou o diálogo.
Mas é óbvio que quer o diálogo.
Será. Mas bem lá no fundo, acho que o seu dilema é este: Se te queres atirar a eles, porque não te queres atirar a eles? Mas um Papa não pode ter estes dilemas, isso é matéria reservada aos cães existenciais.
A aspirina é para agora?
Só no fim de comer.

Cão existencial 2

Por onde andaste? Por momentos até pensei... Sei que não é o teu género, mas juro que por momentos, sei lá...
Ora, o que para aí vai. Mas sensibiliza-me a tua preocupação.
Está bem, mas afinal por onde andaste? Se é que se pode saber, claro.
Pode, tudo se pode saber.
Lá estás tu a desviar.
Nada disso. Estou-te grato pela pergunta, o mundo é tão grande e nós tão pouca coisa nele.
Vês? Desvio.
E também estou muito grato ao Groucho. Oh, a Germaine Greer, anarquista e feminista, que mulher espantosa.
Sim, foi um gesto nobre.
Solidário.
Solidário, sem dúvida. Mas afinal por onde andaste?
Para dizer a verdade, andei com a Germaine Greer. Aí tens. Aceitei a oferta, quer dizer, segui o conselho.
Conselho?
Foi assim que li. Fim de semana com a Germaine Greer que me cabe. É pós-anarquista e pós-feminista, sabias?
E o cão existencial?
Recomeça de uma forma pós-filosófica.
E como é isso?
Assim: se te queres matar porque não te queres matar?
Hum... E a aspirina?
Já tomei. E não me perguntes por deus.
Não ia perguntar. Só pela Leitora.
Regressa de férias um dia destes.
É bom que sim, já estou cansado de ser a tua consciência. És um gajo pesado e chato, já te tinham dito?
Todos os dias mo lembras.

Cão existencial 1

Ora vamos lá a saber, então: se te queres matar, porque não te queres matar? Lembras-te, hem? Já não se usa, não é? Ainda se fosse em directo. Mas isso consegue-se. Vais ver que se consegue. E aqui para nós que ninguém nos ouve, é sempre em directo, percebes? E quanto mais directo mais eficaz. Certo, esse é outro apartado, e até o mais importante. Mas é sempre em directo. Que ninguém esteja a ver, é pormenor. És espectador que baste. Mas vamos lá a saber, então: se tens a aspirina, para que precisas de deus?

Meandros quase poéticos

Ontem foi um dia longo, com aquela dose imensa de estupidez universitária à qual só se sobrevive pelas poucas pequenas coisas que de formas várias vão sendo o meu tão certo secretário. Um blog também pode ser isso. E podemos acordar muito cedo, porque está tudo atrasado (a estupidez, para além de bastante insuportável em si mesma, tem este surplus de impedir de fazer), e avançar no trabalho até nos saltar o post de que precisávamos. Uma citação, um envoi. E só muito depois, agora precisamente, nos ocorrer que o envoi pode ser lido segundo um endereço errado. Por exemplo, o das versões PM de e.e. cummings. São L. diferentes. Digo eu do meu lado, claro. Mas de súbito tive uma necessidade urgente de reler todas essas versões. Como se fossem de L. para mim. Que são.

para L.

Cada livro é uma pedagogia destinada a formar o seu leitor. As produções em massa que inundam a imprensa e a edição não formam os leitores, supõem, de modo fantasmático e primário, um leitor já programado. Embora acabem por formatar este destinatário medíocre que antecipadamente postularam. Ora, por cuidado de fidelidade, no momento de deixar um rastro, eu não posso senão torná-lo disponível para quem quer que seja: nem sequer posso endereçá-lo singularmente a alguém.
Derrida, Aprender finalmente a viver, Ariadne Editora, p. 32

A pergunta que se impunha

Vistos do público, éramos três. Zeferino Coelho à direita (porque já está acima destas coisas), Pedro Eiras ao centro (porque era o alvo), eu à sinistra (porque é da minha condição). Findo o palratório, saltou a primeira pergunta do público: “Peço desculpa, cheguei um pouco atrasado. Qual dos senhores é o Gonçalo M. Tavares?”

Dois gajos perigosos e um cota [último aviso]

Dia 12 Setembro, terça-feira, às 18h, na FNAC de Santa Catarina, Porto, lançamento do livro de Pedro Eiras (um gajo perigoso), A moral do vento. Ensaio sobre o corpo em Gonçalo M. Tavares (outro gajo perigoso).
Apresentação de Luís Mourão (um cota)

***

“E um verso cortado à mão é mais forte que um verso cortado com uma máquina de agradar”
Gonçalo M. Tavares citado por Pedro Eiras

“Também se deve cortar um livro. Tento fazê-lo aqui. Com um mínimo de regras (três escritos sobre cada livro de Gonçalo M. Tavares, convocando outros autores, sempre que possível, para deslocar a focagem), com um máximo de liberdades (confirmar, negar, aplicar, desenvolver, sobretudo deixar que o texto fale aqui: não retirar energia ao texto mas deixá-lo encontrar regos por onde se espraie). Um ensaio não deve ser apenas sobre os livros lidos. Deve entrar neles sempre de modos diferentes, sem repetir. Condição do ensaio: ser imprevisível, o mais que possa, de cada vez. Ensaio contradiz técnica. // Ensaio: cortar à mão. Se for sincero, ninguém deve poder prever que forma ele desenhará.”
Pedro Eiras, A moral do vento, p. 79

Eis a intenção da perfomance. Uma certa imagética clássica da crítica, aparentemente falocêntrica e industrial no arco que une “entrar” e “cortar”, torna-se outra coisa pela extrema fragilidade da mão, pela forma artesanal e individual de ler segundo a mão: confirmar, negar, aplicar, desenvolver. Deambulações para deixar o texto falar, porque um texto não fala tudo de uma só vez, nem fala sempre a mesma coisa de cada vez que fala. E isso só se vai sabendo prolongando a sua escrita — é isso também o ensaio. Mas porquê três escritos sobre cada livro de Gonçalo M. Tavares? Curioso que o ensaísta não sinta necessidade de se explicar acerca desta estrutura. Ora, se leu até aqui, fique sabendo que não paga bilhete para ir ouvir o resto. Ok, já sei, pela intelectualice disto até parece que estou a fazer publicidade negativa; mas cá por casa há esta fatídica mania de nunca levar ninguém ao engano...

Impasses

Não será da ordem natural das coisas, mas é bem provável que seja da ordem natural das ideias, sobretudo das ideias políticas: a melhor crítica vem sempre dos dissidentes. Cinco anos depois, as brechas no grupo dos neo-conservadores que delinearam a política internacional da administração Bush (pré e pós 11 de Setembro) são mais que muitas. Fukuyama é o exemplo mais mediático, mas não é o único. O que apenas quer dizer que é urgente, cada vez mais, repensar as estratégias globais de luta contra o terrorismo. Mas nestas questões pensar não é fácil: qualquer passo que se dê, e há sempre quem vocifere ou “anti-americanismo” ou “imperialista dos interesses do petróleo”. E mesmo quem deu algumas provas no passado, desliza com alguma facilidade para a acusação simplista. Veja-se a entrevista que Paulo Tunhas concede ao Miniscente. Onde Impasses foi um livro sério, concedendo aos seus adversários o máximo que lhe era possível conceder, e fazendo o seu próprio caminho sem nunca escamotear as aporias com que se confrontava — e por isso foi um livro que me senti obrigado a ler, para pôr à prova a minha posição, bastante contrária à dos autores —, a entrevista é de uma sobranceria sem nome, que julga sem mesmo ouvir. Se a entrevista é uma homenagem ao 11 de Setembro, o mínimo que posso dizer é que Paulo Tunhas filósofo, co-autor com Fernando Gil, merecia mais de si mesmo.

11/9

Nunca o saberemos. Mas custará acreditar que naquele dia, mais do que qualquer outra, a expressão mais vezes dita terá sido I love you? Os telefonemas das torres, os telefonemas entre os sobreviventes, que foram de repente todos os que lá não estavam. I love you: a promessa de vida mais simples, a única que conta.

The falling man é um documentário impressionante. Aos que saltaram das torres — empurrados?, em consequência de mais explosões?, ou escolhendo conscientemente entre morrer queimado e o suicídio — , a sua morte começou por lhes ser retirada. O seu gesto foi rasurado, a sua suposta covardia apagada. Só houve lugar para vítimas soterradas e heróis dos escombros.
A questão é sempre: que nos pedem as vítimas? Que coisa está implícita no dever de não esquecer as vítimas?
Antes de mais, eu diria que nos exigem que as lembremos como humanas. Neste caso, como humanas que puderam ainda ser capazes de uma última e terrível escolha. Mas escolha legítima. Absolutamente.
Mas sobretudo, e muito mais difícil, exigem-nos que por sobre a dor sejamos capazes de continuar a pensar.

Não arrefeceu tanto quanto a manhã prometia. Talvez logo à noite. Entretanto, convoco a sombra. Ler, escrever. Reler, emendar. Tédio, exaltação. A disciplina. Os seus frutos de rigor e desvario sibilino.

Não, ainda não tenho Modern times, atrasei-me, espero pela próxima leva. Mas no canto do ecrã, de vez em quando, vou passando o vídeo. Nem vale a pena perguntar se a canção valeria o mesmo sem a perfeição amateur do filme. A nossa cabeça é bem capaz de filmes igualmente perfeitos, e duvido muito que hoje se possa ouvir música sem que o nosso filme interior se ponha a correr. Mas há dois momentos em que o filme é meu: a mão no pelo do cão, o corpo adormecido. Sim, a felicidade existe. O resto é ir contra cadeiras: o preço a pagar.

Refrescou.
Preciso urgentemente de um Outono amarelo e generalizado.

gesto 1


“O ponto é o início de um livro: surge antes da primeira letra da primeira frase

.

Gonçalo M. Tavares, Investigações geométricas, p. 7 (citado por Pedro Eiras)

“O ponto é também o umbigo da página, a lembrança de um cordão — mas ligando ao não-ser.”
Pedro Eiras, A moral do vento. Ensaio sobre o corpo em Gonçalo M. Tavares, p. 16

O início só existe dentro do pacto ficcional. Pode dizer-se de muitas maneiras: ponto, voz, gesto, qualquer coisa que facilmente possamos reduzir a uma unidade mínima. O importante, no fundo, não é a unidade mínima, mas o facto de dela dizermos que é o início, um início.
O pacto ensaístico não permite esses inícios. A introdução não é um início, mas um protocolo que simula o início. Um início em ensaio é já o meio, algures no meio de qualquer coisa, em passagem (ponte, desfiladeiro, recta). Um entre. Mesmo “ligando ao não-ser”, que é um caso limite, pois parece quase um início. Mas é já uma passagem. Assim vai sendo um ensaio.

Psicopatologia da vida quotidiana

Sabe quais são as melhores casa do mercado, doutor? Eu digo-lhe e não lhe levo nada por isso. É fácil. Divórcio nas famílias com algum status. Ou pessoal que calculou mal os encargos e não aguenta a manutenção. Só precisa esperar. Depois, é só cair em cima. É lá, doutor, você ficou assim para o branco... Trago-lhe um copo de água?

Visite o andar modelo

Aqui é a suite maior, com casa-de-banho em branco-e-preto, e repare no pormenor, o papel higiénico é preto, que é um conceito totalmente novo, chamam-lhe o papel higiénico de toillete. Damos um stock de 12 rolos na compra do andar.

Dois gajos perigosos e um cota

Dia 12 Setembro, próxima terça-feira, às 18h, na FNAC de Santa Catarina, Porto, lançamento do livro de Pedro Eiras (um gajo perigoso), A moral do vento. Ensaio sobre o corpo em Gonçalo M. Tavares (outro gajo perigoso).
Apresentação de Luís Mourão (um cota).

[depois do fim, 23: post scriptum]

Hum, então tu achas que uma pergunta depois do fim, uma pergunta sobre o que veio depois do fim, uma pergunta sobre o que existe para além da tua ausência... Hum, tu achas que uma pergunta assim não é uma pergunta de amor mas uma pergunta para além do amor?.. Engraçado, tens a premissa certa — a nossa vida não é suficientemente longa para tal —, mas a conclusão errada... Curioso, como o que tantas vezes distingue a má literatura da outra não é propriamente uma questão de literatura... Mas deixemos o caso por aqui, ok?

[depois do fim, 22: epílogo]

Nos tribunais, a regra de ouro é: nunca faças uma pergunta cuja resposta não saibas.
Pode-se viver a vida em tribunal. Ou pode-se tentar começar a saber. Pergunta-lhe: qual é a cor do mar quando não estou ao teu lado? Mas tens de saber ouvir. No fim, talvez lhe possas dizer: vai lá então para o teu mar. Ou aceitá-lo em silêncio. Como a erva cresce em qualquer lugar. O resto, como sabes, é má literatura.

[depois do fim, 21]

Não, a nossa vida não é suficientemente longa para tal. Não conseguirás ultrapassar essa “distância de delicadeza” com que o passado te deixa partir, mesmo que o não queiras. Não possuis as memórias, apenas as visitas de vez em quando. Deslocam-se dentro desse “fosso incendiado”, alheias a horários ou conveniências. Resistem. Resistem sempre mais. Às vezes recordas, e tens quase a certeza de que não foi assim mas de outro modo um pouco diferente. Mas já não sabes como. Outras vezes incendeiam-te por breves segundos e pensas que não aguentarás aquilo que já sabes que ultrapassaste. Não, a nossa vida não é suficientemente longa para tal.

[depois do fim, 20: lição da erva daninha]

A erva daninha é a Nemésis dos esforços humanos. De todas as existências imaginárias que atribuímos às plantas, aos animais e às estrelas, é talvez a erva daninha que leva a vida mais inteligente. É verdade que a erva nem sequer produz flores, nem porta-aviões, nem Sermões na montanha. (...) Mas, ao fim e ao cabo, é sempre a erva que tem a última palavra. (...) A erva só existe entre os grandes espaços não cultivados. Preenche os vazios. Cresce entre, e no meio das outras coisas. A flor é bela, a couve é útil, a papoila faz enlouquecer. Mas a erva é profusão, é uma lição de moral.
Henry Miller, Hamlet, citado por Deleuze e Guattari, Rizoma, Assírio & Alvim, p. 46

Lição de moral? Sim. Esta: deixar espaços por cultivar em atenção da erva daninha. Fácil? Questão de preguiça? Bem pelo contrário: questão de rigorosa disciplina de despossessão.

[depois do fim, 19]

Não, a nossa vida não é suficientemente longa para tal. Não te deitarás sobre os campos das tuas próprias batalhas “com um palito nos dentes / e olhar perdido nas nuvens”, como se fosses estranho à relva “onde nasceram causas e efeitos” que são tu. Mas podes sempre descuidar a relva. Convém até que o faças um pouco. Permitir a erva daninha. Tentar aprender a lição da erva daninha.

[depois do fim, 18]

Esqueces-te das estratégias, mas visto a uma certa distância tudo parece ter sido deliberado. Não se entende o tempo sem uma história, e todos somos ficcionistas previsíveis da nossa própria existência.

[depois do fim, 17]

Hesitas entre as estratégias para esquecer ainda mais e as estratégias para não esqueceres assim tanto.

[depois do fim, 16]

Tudo recomeça imperceptivelmente, as cicatrizes são a tua pele natural a um outro olhar.

[depois do fim, 15]

Quando te assustas com o som do teu riso e perguntas: como pude esquecer?

[depois do fim, 14]

Quando começas a sentir o tempo que te sobra como uma dádiva: a ausência esfuma-se e o presente deixa-se ver.

[depois do fim, 13]

Quando escreves mentalmente tudo o que tens de fazer para garantir a sobrevivência e te obrigas a cumprir o caderno de encargos.

[depois do fim, 12]

O momento em que deus se volta a aproximar e mudas de passeio delicadamente para que ele possa passar à vontade.

[depois do fim, 11]

O momento em que pensar o amor se torna inútil, e estás pronto para não haver mais nada.

[depois do fim, 10]

O momento em que se percebe que somos, todos, a doença do mundo.

[depois do fim, 9]

Quando o silêncio não é a tua pele nem a longa quieta noite, mas uma batalha recomeçada.

[depois do fim, 8]

Quando tenho de fazer os gestos inteiros, porque já não mos completas.

[depois do fim, 7]

Quando entre mim e o mundo já não há o teu corpo.

[depois do fim, 6]

O embaraço de se perceber que o que sabemos sobre aquela pessoa única nos educa acerca da próxima pessoa. Não por repetição, mas por pertença a um género.

[depois do fim, 5]

Uma carta depois do fim é ainda uma carta de amor? Sim, sempre. Absolutamente. Que outra razão haveria para uma carta depois do fim?

[depois do fim, 4]

Muitos anos depois, encontraram-se por acaso. Verificaram com minúcia que o destino nada tecera nas suas costas que desse qualquer sentido a esse encontro. Deixaram em silêncio as perguntas usuais, por não se aplicarem ao seu caso. Quiseram apenas saber do essencial: qual é a cor do mar quando não estou ao teu lado?

[depois do fim, 3]

Então vi-os chegar. Vi aquele bando de jovens montanheses. Caminhavam em direcção ao sítio da batalha com tal furor que não me admiraria se de repente levantassem os punhais. Vinham trajados rigorosamente, com aqueles mantos coloridos que também acharam fim com a derrota em Culloden. (...) caminhavam apoiados no mecanismo dos seus músculos, batendo fortemente no chão a cada passo. O ar cedia à sua volta, recolhia pedaços dos seus cheiros masculinos, do seu resfolegar, e recompunha-se, fechava-se de novo por trás deles, levemente alterado, porque nada, ninguém pode cruzar-se com tal raiva e querer ficar exactamente como era. (...)
Ainda que eu tivesse conseguido vencer a timidez e aproximar-me, nunca franquearia essa barreira, essa espécie de fosso incendiado dentro do qual eles se iam deslocando. Eram uns cinco ou seis mas, ao saírem para a claridade do meio-dia, faziam sombra como um temporal. Desembocavam sobre Culloden e, se em algum momento aqueles campos se recordaram da batalha, foi então.
Deixei que entre eles e eu se interpusesse uma distância de delicadeza e apressei-me depois no seu encalço. O vento e o sol bateram-me na cara e eu defendi-me. Nunca mais os vi, e no entanto era impossível que eles tivessem, naqueles segundos, alcançado o horizonte.
Hélia Correia, Lillias Fraser, Relógio D’Água, 2001, p. 17-18

Nota marginal 1: a arte da ficção não será a de fazer com que pareça um gesto nosso de distância de delicadeza aquilo que na verdade é a resistência do outro a ser analisado?
Nota marginal 2: qualquer paixão, depois do fim, é como o vasto campo de Culloden; revisitado por um ou outro, há sempre um fantasma que se desloca dentro de um fosso incendiado, a uma distância intransponível mas que queima ainda; queima para nada.

[depois do fim, 2]

Estive no campo de batalha de Culloden em 1999, a meio de Abril, um dia após as comemorações, quando ainda os ramos de narcisos, flores da morte, levemente crestados pela brisa, tremiam junto às pedras lapidares. Velhos americanos percorriam toda a extensão assinalada, procurando marcas do clã de onde pensavam descender. Estavam dispostos a fantasiar, a pagar qualquer preço por um pouco de História, que é aquilo que lhes falta.
(...) Eu bem os vi, no dia em que lá fui. Senti-me exausta por andar de pedra em pedra sem partilhar a alegria americana. Acho que o alarme que corria o campo era audível a gente como eu, puros visitantes que não iam à espera de o ouvir. Por muito fundas que tivessem as raízes, na formação das ervas não havia um átomo do sangue derramado. Passara muito tempo. E no entanto alguma coisa que rangia, um desespero, cortava o ar e cintilava à luz de Abril.
Hélia Correia, Lillias Fraser, Relógio D’Água, 2001, p. 14-17

Percebo. O tempo passou, e contudo alguma coisa persiste. Alguma coisa que não vem desse tempo que passou, mas do depois. Não é uma memória, mas o rumor contínuo do seu desaparecimento, já totalmente consumado mas ainda encarniçando-se em desaparecer de forma mais perfeita. Um puro visitante ouve isto, este rumor? Sim, provavelmente. Mas como pode esta narradora ser um puro visitante? A não ser que o puro visitante seja aquele que está avisado para as ilusões da reconstrução ficcional. E isso seja a possibilidade de ver no agora a simultaneidade do antes. Não a reconstrução, mas a repetição segundo a diferença do presente.

paisagem, areia 10 [depois do fim]

Aqueles que souberam
do que aqui se passou,
têm que dar lugar aos
que pouco sabem.
Até menos que pouco.
e finalmente tanto como nada.

Na relva onde nasceram
causas e efeitos,
terá de estender-se alguém
com um palito nos dentes
e olhar perdido nas nuvens.

Wislawa Szymborska, Paisagem com grão de areia

O contrário do romance

Claro, andarmos atolados na vidinha também tem as suas vantagens. Caso Mateus? Mas quem é esse? De qualquer modo, não quero saber, não leio. Obituário do Indy? Mas nunca fui desses lados. Ao menos uma reflexãozinha sobre uma certa direita e o seu jornalismo e aquela geração MEC que...? Sorry, não me apetece mesmo nada, não sou obrigado, tá-se bem, ok? Mas espera aí, afinal sempre quero dizer aqui uma coisita sobre o MEC. Como romancista, era uma das minhas apostas. Apanhei largo por causa disso, mas achava que o homem chegava lá. Afinal, não me tinha enganado sobre o Lobo Antunes. Havia lá negro, e quando o fogo de artifício se acabasse, o negro haveria de aparecer em todo o seu esplendor. Também vi negro no MEC. E isso continua lá, mas não aparece. Está defendido pelo estilo Indy. O fogo de artifício continua sempre, mesmo repetitivo, sensaborão. Certo, dar cabo do respeitinho (foi) é uma grande tarefa. Mas a pantomina que se perpetua e imita a si mesma torna-se fuga. Paradoxo fundamental: a fuga faz-se usando os meios de locomoção que permitiriam a aproximação. Lembram-se do MEC numa de Beckett? Qualquer coisa como: falhei em tudo, falhei na vida, no casamento, na filosofia, na escrita, nos amigos, em tudo. Lembram-se dessa auto-ironia com que parecia começar-se a desmontar aquela grande tenda do circo Indy? Pois foi como as grandes salas de cinema: sempre que se pôde, de uma enorme faziam-se três pequenas, e em vez de um filme de pipocas tínhamos três filmes de pipocas. Em todos aparece um tipo numa de Beckett: falhei em tudo, etc e tal. Mas nunca se diz com que saber e com que ignorância, como, de que modo, com que cegueira e com que evidência. Isso demora tempo, e o estilo Indy define-se pela rapidez. Isso implica a dúvida, e o estilo Indy define-se pela afirmação. Isso obriga ao impoder, e o estilo Indy é o assalto ao poder. Em suma: o estilo Indy é o contrário do romance, e quanto a isso, MEC ainda não largou o Independente.

Como é que se diz? Estado em que se encontra este blog?

Agora que oficialmente as férias terminaram, este cansaço não augura nada de bom. Ah, a vidinha... Percebo tão bem o que levava alguns a deixar tudo e a rumar para o deserto ou para as montanhas. Não é que eu, bem entendido, os tempos são outros, etc e tal. Se bem que... Mas como diz uma amiga: podia ser muito pior. Ou são fases, como costumo dizer a mim próprio. E já se sabe que para descanso bastará a morte. Claro que tudo isto é treta, mas mais vale tomar um post do que comprimidos para dormir. É passarem ao blog seguinte (como se fosse preciso dizê-lo...).