[depois do fim, 2]

Estive no campo de batalha de Culloden em 1999, a meio de Abril, um dia após as comemorações, quando ainda os ramos de narcisos, flores da morte, levemente crestados pela brisa, tremiam junto às pedras lapidares. Velhos americanos percorriam toda a extensão assinalada, procurando marcas do clã de onde pensavam descender. Estavam dispostos a fantasiar, a pagar qualquer preço por um pouco de História, que é aquilo que lhes falta.
(...) Eu bem os vi, no dia em que lá fui. Senti-me exausta por andar de pedra em pedra sem partilhar a alegria americana. Acho que o alarme que corria o campo era audível a gente como eu, puros visitantes que não iam à espera de o ouvir. Por muito fundas que tivessem as raízes, na formação das ervas não havia um átomo do sangue derramado. Passara muito tempo. E no entanto alguma coisa que rangia, um desespero, cortava o ar e cintilava à luz de Abril.
Hélia Correia, Lillias Fraser, Relógio D’Água, 2001, p. 14-17

Percebo. O tempo passou, e contudo alguma coisa persiste. Alguma coisa que não vem desse tempo que passou, mas do depois. Não é uma memória, mas o rumor contínuo do seu desaparecimento, já totalmente consumado mas ainda encarniçando-se em desaparecer de forma mais perfeita. Um puro visitante ouve isto, este rumor? Sim, provavelmente. Mas como pode esta narradora ser um puro visitante? A não ser que o puro visitante seja aquele que está avisado para as ilusões da reconstrução ficcional. E isso seja a possibilidade de ver no agora a simultaneidade do antes. Não a reconstrução, mas a repetição segundo a diferença do presente.

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