Cão existencial 6

Lembras-te do absurdo? E se procurasses no passado?
É sempre um bom lugar para procurar essas coisas, concordo. Mas já passei a fase.
Eu dizia procurar abstractamente.
A puxar à metafísica?
É mais à metapsicologia, penso eu. Mas tenta assim:

A Nossa Vez

É o frio que nos tolhe ao domingo
no Inverno, quando mais rareia
a esperança. São certas fixações
da consciência, coisas que andam
pela casa à procura de um lugar

e entram clandestinas no poema.
São os envelopes da companhia
da água, a faca suja de manteiga
na toalha, esse trilho que deixamos
atrás de nós e se decifra sem esforço
nem proveito. É a espera

e a demora. São as ruas sossegadas
à hora do telejornal e os talheres
da vizinhança a retinir. É a deriva
nocturna da memória: é o medo
de termos perdido sem querer

a nossa vez.

Rui Pires Cabral, Longe da aldeia, Averno, p. 30

Gosto dessas coisas que entram clandestinamente no poema. Parece-me que por cada uma que entra clandestinamente no poema, sai outra subrepticiamente da nossa vida. Mas e só uma ideia, claro.
E olha, tens tomado as aspirinas?
Religiosamente.
E tem ajudado?
Amanhã de manhã já entro oficiosamente na ressaca.
Ainda bem, ainda bem.

0 comentários: