Sem dúvida, Rui Bebiano tem razão quanto ao meu interesse de análise, e deve ser pela junção de todas as razões que enuncia — tanto quanto o próprio o pode saber. Mas isso não significa que não me interesse vivamente pelo outro processo, o da transformação de vulgatas em programas ou filosofias de vida: não se pode falar de literatura contemporânea sem falar desse longo combate dos autores contra a estupidez das ideias feitas e das vidas vividas por imitação. E a estupidez e a imitação podem ser profundamente assassinas — nenhuma dúvida quanto a isso.
À partida, as nossas duas formas de abordagem não se excluem, até porque não se debruçam exactamente sobre o mesmo objecto — penso eu. Colocaria as coisas deste modo: Ratzinger ou Pio IX não são a Bíblia, Estaline não é Marx, a fatwa não é o Corão. Rui Bebiano interessa-se, e bem, sobre o modo como certas leituras de textos fundadores se substituem aos textos fundadores, reduzindo a sua ambiguidade, tornando-o palavra de ordem — palavra de ordem eventualmente assassina, até — e determinando modos de vida que sem dúvida fazem mundo. Alguma dúvida que Estaline faz isto a partir de Marx? A velha questão é: Marx é responsável por Estaline, ou Estaline criou o seu próprio Marx? Para mim, a resposta é inequívoca: Estaline criou o seu próprio Marx (sendo que obviamente eu não posso apontar o Marx ele próprio). O facto de existirem leituras marxistas anti-estalinistas constitui a prova. Isso não obsta à análise de Estaline e das suas vulgatas, antes pelo contrário, mas essa análise não é ipso facto uma análise de Marx, nem a condenação de Estaline constituirá automaticamente uma condenação de Marx.
E se isto é verdade acerca da relação Marx-Estaline, mais o será acerca da relação dos textos das grandes religiões monoteístas com os seus intérpretes. A fatwa é uma “leitura” do Corão: no que afirma, merece-nos a ambos um firme repúdio; enquanto leitura, não diria que ela traduz ou deixa de traduzir a verdade do Corão, confronta-la-ia com outras leituras e tomaria o partido das que se alinham pelo repúdio que ambos temos pelos conteúdos da fatwa. Do mesmo modo (embora por razões diferentes, claro) que não vou na companhia de Ratzinger, mas prezo, e muito, por exemplo, a companhia do Graal (Lurdes Pintassilgo, Isabel Allegro de Magalhães).
O que me preocupa é um certo tipo de desproporção na análise. Deste lado, para crentes e não crentes, é óbvio que não há o cristianismo mas cristianismos. Relativamente ao outro lado, dizemos com demasiada frequência o Islão. Deste lado, para a esmagadora maioria dos crentes e para a totalidade dos não crentes, o jardim do paraíso é uma metáfora. Relativamente ao outro lado, o jardim da guerra parece que pode ser tomado à letra. Ora, ressalvada a comparação, há criacionistas como há adeptos da fatwa: mas alguém cita o Génesis para acusar o cristianismo de criacionista?
À partida, as nossas duas formas de abordagem não se excluem, até porque não se debruçam exactamente sobre o mesmo objecto — penso eu. Colocaria as coisas deste modo: Ratzinger ou Pio IX não são a Bíblia, Estaline não é Marx, a fatwa não é o Corão. Rui Bebiano interessa-se, e bem, sobre o modo como certas leituras de textos fundadores se substituem aos textos fundadores, reduzindo a sua ambiguidade, tornando-o palavra de ordem — palavra de ordem eventualmente assassina, até — e determinando modos de vida que sem dúvida fazem mundo. Alguma dúvida que Estaline faz isto a partir de Marx? A velha questão é: Marx é responsável por Estaline, ou Estaline criou o seu próprio Marx? Para mim, a resposta é inequívoca: Estaline criou o seu próprio Marx (sendo que obviamente eu não posso apontar o Marx ele próprio). O facto de existirem leituras marxistas anti-estalinistas constitui a prova. Isso não obsta à análise de Estaline e das suas vulgatas, antes pelo contrário, mas essa análise não é ipso facto uma análise de Marx, nem a condenação de Estaline constituirá automaticamente uma condenação de Marx.
E se isto é verdade acerca da relação Marx-Estaline, mais o será acerca da relação dos textos das grandes religiões monoteístas com os seus intérpretes. A fatwa é uma “leitura” do Corão: no que afirma, merece-nos a ambos um firme repúdio; enquanto leitura, não diria que ela traduz ou deixa de traduzir a verdade do Corão, confronta-la-ia com outras leituras e tomaria o partido das que se alinham pelo repúdio que ambos temos pelos conteúdos da fatwa. Do mesmo modo (embora por razões diferentes, claro) que não vou na companhia de Ratzinger, mas prezo, e muito, por exemplo, a companhia do Graal (Lurdes Pintassilgo, Isabel Allegro de Magalhães).
O que me preocupa é um certo tipo de desproporção na análise. Deste lado, para crentes e não crentes, é óbvio que não há o cristianismo mas cristianismos. Relativamente ao outro lado, dizemos com demasiada frequência o Islão. Deste lado, para a esmagadora maioria dos crentes e para a totalidade dos não crentes, o jardim do paraíso é uma metáfora. Relativamente ao outro lado, o jardim da guerra parece que pode ser tomado à letra. Ora, ressalvada a comparação, há criacionistas como há adeptos da fatwa: mas alguém cita o Génesis para acusar o cristianismo de criacionista?
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