[depois do fim, 3]

Então vi-os chegar. Vi aquele bando de jovens montanheses. Caminhavam em direcção ao sítio da batalha com tal furor que não me admiraria se de repente levantassem os punhais. Vinham trajados rigorosamente, com aqueles mantos coloridos que também acharam fim com a derrota em Culloden. (...) caminhavam apoiados no mecanismo dos seus músculos, batendo fortemente no chão a cada passo. O ar cedia à sua volta, recolhia pedaços dos seus cheiros masculinos, do seu resfolegar, e recompunha-se, fechava-se de novo por trás deles, levemente alterado, porque nada, ninguém pode cruzar-se com tal raiva e querer ficar exactamente como era. (...)
Ainda que eu tivesse conseguido vencer a timidez e aproximar-me, nunca franquearia essa barreira, essa espécie de fosso incendiado dentro do qual eles se iam deslocando. Eram uns cinco ou seis mas, ao saírem para a claridade do meio-dia, faziam sombra como um temporal. Desembocavam sobre Culloden e, se em algum momento aqueles campos se recordaram da batalha, foi então.
Deixei que entre eles e eu se interpusesse uma distância de delicadeza e apressei-me depois no seu encalço. O vento e o sol bateram-me na cara e eu defendi-me. Nunca mais os vi, e no entanto era impossível que eles tivessem, naqueles segundos, alcançado o horizonte.
Hélia Correia, Lillias Fraser, Relógio D’Água, 2001, p. 17-18

Nota marginal 1: a arte da ficção não será a de fazer com que pareça um gesto nosso de distância de delicadeza aquilo que na verdade é a resistência do outro a ser analisado?
Nota marginal 2: qualquer paixão, depois do fim, é como o vasto campo de Culloden; revisitado por um ou outro, há sempre um fantasma que se desloca dentro de um fosso incendiado, a uma distância intransponível mas que queima ainda; queima para nada.

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