Breve história da leitura em comboio seguida de um pedido aos Senhores da CP

No começo do mundo, aí por volta dos anos oitenta, uma viagem Braga-Lisboa demorava cerca de seis horas. Fora das horas de ponta, até que podia ser uma coisa catita. Havia aqueles comboios que tinham compartimentos para seis pessoas, lembram-se?, e era perfeitamente possível fazer a viagem inteira sozinho. Ler era fácil, e de vez em quando ainda dava para olhar a paisagem. A mala é que ia carregada, porque eram necessários vários livros: mudar o registo era imprescindível, para não esmorecer a atenção.
Vieram depois os inter-cidades. Maior conforto, mais rapidez, ler era um regalo, e a mala ia um pouquinho mais aliviada. Até que, mesmo fora das horas-de-ponta, viajar em segunda se tornou um banho de multidão, com conversas altas, miúdos a berrar e outras coisas perniciosas à concentração da leitura.
Voltei à primeira classe e por lá me mantive, a bem da leitura, até ao advento dos telemóveis. Se o seu sucesso foi o que se sabe, nada como a experiência própria para poder assegurar que, antes da sua vertiginosa democratização, foram um gadget elitista. E como as pessoas não estavam habituadas, que para tudo é preciso aprendizagem, era ver como respeitáveis cavalheiros que no “tu cá tu lá” não passavam de um sussurro discreto, se erguiam a vozeirão de sargento falando em andamento para os seus clientes e escritórios. Ainda hoje guardo o trauma de ouvir distintamente o distinto Dias Loureiro — à altura ministro, nem mais —, com pelo menos dois telemóveis (um em cada mão eu vi, no resto não passei revista) e cem problemas urgentes para resolver logo ali, cada qual exigindo ordem mais alta e sonante.
Voltei brevemente à segunda classe, mas foi sol de pouca dura. Nunca um anúncio foi tão educativo como aquele do “tou xim!”: o povo aprendeu a atender, e de repente toda a carruagem era só pastores e eu deixei de poder pastar as minhas ervinhas pensantes em paz...
Por razões que não vêm ao caso, durante uns anos calhou não frequentar comboios. Agora que a eles voltei, pouco espaço há para a leitura: a classe turística é impossível, entre telemóveis e filmes em computador com som “ambiente”; a classe conforto impossível é, entre telemóveis e conferências em alta voz.
Senhores da CP: que tal uma carruagem, ou meia-carruagem, em que não fosse permitido atender telemóveis, ouvir música em auscultadores ou falar com o parceiro do lado? Obrigado.

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