paisagem,areia 1: continua a tentar


Invento o mundo, segunda edição,
segunda edição corrigida,
no riso, para os idiotas,
no choro, para os melancólicos,
nos pentes, para os carecas,
nos sapatos, para os cães.


Wislawa Szymborska, Paisagem com grão de areia
Tradução de Júlio Sousa Gomes
Relógio D'Água, 1998

A Leitora, no seu infinito particular (XXIV)

- Luís, vê lá isto. O Groucho continua a dizer das suas, e ainda é capaz de ressuscitar por via da crítica. Já se viu ressuscitar por menos, quer dizer, com menos efeitos práticos. Mas não era pela religião que eu me queria meter. O que me preocupa mesmo é o EPC. Não seria melhor convidar o Eduardo para uma longa viagem de comboio? Estas coisas afligem-me. A sério. Afligem-me e entristecem-me. E não me venhas dizer que é o meu lado feminino, quando está mais que visto que estamos perante um caso humano. Tu não poderias falar com o Eduardo? Afinal, o homem sempre foi teu orientador quando te iniciaste nestas lides. Se daqui a uns tempos também te pões a imaginar os textos que não leste, não gostarias que eu te convidasse para uma longa viagem de comboio onde pudesses ler sossegadamente? Que dizes?
-.........
- Estou, Luís? Estou?
-..........
- Se calhar está a ler, disse-me que tinha de fazer umas recensões e o prazo estava apertado. Ou será que o fantasma do Groucho ainda o atormenta? A verdade é que a morte fez bem ao Groucho. Mas deve estar a ler. No outro dia disse-me que tinha inventado as conclusões de um inquérito, que eles estavam mesmo a pedi-las, mas uma recensão é outra coisa. Espera lá, se calhar o EPC também achou que outra vez a questão da crítica já era demais, que não havia pachorra para mais uma repetição, mas sempre dava mais uma crónica... Bom, se calhar o melhor é eu ir ler também. Este não dá para ler no comboio, pesa que se farta, e o suporte para as refeições é muito lá em baixo. Dois volumes, ainda para mais. Portugal Extemporâneo, belo título. E o Carlos Leone agora também já bloga, de modo que qualquer dúvida e sai email direitinho ao autor. A ver se percebo porque é que o Luís me obriga a ler isto. Não gosto nada quando ele se põe com aquela coisa de "antes do meio do livro, vais logo perceber que eu tinha todas as razões do mundo para to mandar ler; mas tem mais piada seres tu a descobrir". Como se trabalhar para uma tese fosse um filme policial... Estou, Luís? Estou?
-.....
- Está visto, hoje não tenho orientador.

O caso do raccord interno

- Pois eu acho muito mal que se critique a Charlotte. Mal isto e isto. Muito mal.
- Calma, Leitora. Não te sabia tão veemente defensora da Charlotte. Quer dizer, neste particular, pensei que compreendesses o Cristiano Ronaldo.
- E compreendo, compreendo perfeitamente.
- Bom, agora quem não compreende sou eu.
- Mas é simples, Luís. Os críticos da Charlotte têm razão acerca das razões do Cristiano Ronaldo: se eu chorei que nem uma Madalena por não poder jogar a meia-final de voleibol do inter-turmas do ciclo, que fará um tipo que está no mundial.
- Bem dito. E falhaste porquê?
- Torci um pé nos treinos. Agora imagina o que é levar uma pantufada maldosa de um brutamontes dos países baixos.
- Pois... E não recuperaste a tempo da final?
- Perdemos a meia-final.
- Lamento.
- Obrigada.
- Mas então, voltando ao ponto, se os críticos da Charlotte têm razão acerca das razões do coitadinho do Cristiano Ronaldo...
- É preciso ler todo o post da Charlotte.
- Hum... Caso de leitura, portanto.
- É preciso ler tudo, é sempre preciso ler tudo.
- E então?
- Então, a Charlote começa (na ordem mental, que não na ordem do texto) por criticar muito justamente todos esses lugares-comuns do sofrimento com que se descreveu a vitória da selecção portuguesa, o simples facto de terem defendido com unhas e dentes a diferença mínima. Ele há limites, caramba! O sofrimento é uma coisa muito séria, quem lesse assim a modos que desprevenidamente pensaria que Portugal inteiro esteve a sofrer um cancro doloroso e que no final se safou não se sabe bem porquê.
- Sim, compreendo, de facto foi abusivo, mas eu também desliguei logo a televisão, não aguento as reportagens pós-jogo nem os jornais do day after. E o Cristiano Ronaldo no meio disso?
- O Cristiano Ronaldo no meio disso foi tornado ícone disso. Suor, cãibras e caneladas no campo, lágrimas fora dele. Os comentadores fizeram raccord entre as duas coisas, a Charlote foi atrás do raccord deles...
- ...e apanhou o Cristiano de roldão no meio do raccord...
- ...pois, mas não precisas de ser mauzinho, também.
- Estava apenas a ler. É um caso de raccord interno, digamos assim. Um caso de duplo raccord interno.
- Pois sim... Mas isso dito nesse tom não soa muito compreensivo.
- Mas olha que é, olha que é... e mais a mais, podia lá eu discordar de um post encimado pela Nastassja Kinski? A mim, a Nastassja Kinski sempre me convenceu de tudo.
- Pff...Homens.

Do mundo

Raramente falo aqui do “mundo”, desse mundo político que anda nos telejornais e nos jornais. Abro duas excepções, até porque longamente conversadas com a turma da noite, ontem.
Primeira excepção: o desencanto Xanana Gusmão. Não escolho a palavra em vão. Depois de Mandela, Xanana foi o simples “herói” político num tempo que elegeu duas vezes Bush. Claro, um herói, antes de mais, são as suas circunstâncias, uma conjugação de acasos. Mas é preciso que alguém esteja também à altura dessas circunstâncias. Tudo indica que, agora, Xanana não está. E tudo em Timor parece ir mergulhando para os caminhos mais sórdidos da real politik. Tal como em Angola, má sorte ter petróleo.
A outra excepção: a situação na Palestina. O Hamas e a Fatah preparam-se para reconhecer o Estado de Israel. É um passo decisivo em todas as frentes. Inclusive para retirar a Israel um dos seus mais sólidos argumentos para não avançar mais decididamente para as negociações. Mas o que este reconhecimento vai implicar na reconsideração da imagem do outro é gigantesco. Não é apenas um passo político. Ou melhor, será um passo político efectivo na medida em que tiver repercussões na cultura de um povo. Leva o seu tempo. Mas antes tarde que nunca. De parte a parte.

Ibsen segundo Savinio e volta: conjugação de astros

"A evolução, na obra de Ibsen, segue esta redução constante: da rebelião de um povo (norueguês) à rebelião da sociedade; da rebelião da sociedade à rebelião do homem (entendido no sentido alemão de Mensch, isto é, homem e mulher); da rebelião de Mensch à rebelião «pessoal» da mulher. É como uma passagem do macrocosmo para o microcosmo. (...)
Ibsen, num primeiro momento, pensou que estava destinado a salvar o mundo, num segundo tempo que estava destinado a salvar a sociedade, num terceiro a salvar o homem, num quarto pensou que estava destinado a salvar a mulher... Aqui, pela primeira vez, a missão salvadora deste salvador encontrou terreno fértil e criou raízes. De todos os eleitos da salvação: mundo, sociedade, homem, mulher, só a mulher tinha a necessidade efectiva, urgente, orgânica, de ser salva; e não só a necessidade de ser salva; a mulher «desejava» ser salva e, facto ainda mais importante, condição ainda mais favorável, a mulher estava a contribuir, ela própria, para a sua salvação; por isso, a «missão» de Ibsen, como de resto qualquer «missão», chegou em boa altura e trouxe glória ao salvador, sobretudo por esta razão — porque, por felicidade, ele estava presente, oficiante e «predicante», numa operação que se teria realizado igualmente, mesmo sem a sua intervenção e obra."
Alberto Savinio, Vida de Henrik Ibsen

A Leitora, no seu infinito particular (XXIII)

-Vim outra vez a Lisboa, de raspão. Parece-me que não será tão cedo que me fixarei em Viana.
- Afinal era isso, Leitora.
- Pois. Entrei no Metro a horas mortas. Levava um saco que pus no assento ao lado. Em frente e à volta havia vários lugares vazios.
- Não é muito comum.
- Uma senhora disse-me, apontando para o saco: dá-me licença? Peguei no saco e mudei-me para os assentos em frente.
- Fizeste bem em não ter perguntado nada, Leitora.
- A senhora sentou-se no meu lugar. Respirou fundo. E só depois disse que não conseguia ir de costas para a direcção do comboio.
- Mas havia outros lugares em que ela também não iria de costas para a direcção do comboio, certo?
- Justamente.
- A dificuldade do contacto humano, a quase-agressividade como forma de contacto humano.
- Na paragem seguinte aproveitei para mudar de carruagem. Noutras circunstâncias não o teria feito. O espectáculo da humanidade, compreendes?
- Claro que compreendo.
- Mas o cansaço falou mais alto.
- Também compreeendo.

Ibsen segundo Savinio e volta: terceiro excurso

Regressemos a Savinio, o crítico, e a Ibsen, o autor. Há uma questão de sinos a resolver. Sim, de sinos. Questão cruel, como veremos. Segundo a qual a repetição de uma coisa boa vale menos do que a invenção de uma coisa que até pode ser menos boa. Eu digo questão, porque para mim constitui de facto uma questão: o novo a todo o preço, ou o novo como razão maior, etc. Savinio não faz disto uma questão, antes uma afirmação. Há o Ibsen épico e o Ibsen burguês. O Ibsen épico é a repetição de um tipo de teatro e de mundo cujo molde já tinha sido estabelecido. Mas “quando surgiu o primeiro drama burguês de Ibsen, a saber Casa de boneca, soou um sino novo nos penetrais do palácio mental, acendeu-se uma luz nova no painel sinalizador, o cérebro do mundo sentiu-se rico, com uma riqueza nova.” Muito bem, subscrevo por inteiro. Mas tenho de perguntar: o sino tocou pelo drama burguês enquanto novidade, ou pela sua concretização em Casa de boneca? A minha resposta — não a de Savinio, que não responde propriamente a isto — está no monólogo de Molly Bloom, por exemplo. Os sinos também tocaram por essa corrente de consciência. E tocaram a preceito. Mas a verdade é que essa técnica não é primeiramente joyceana. Um obscuro autor inventou-a primeiro, um autor cujo nome fica nas notas de rodapé dos eruditos por ter canhestramente forjado aquilo que Joyce tornou emblematicamente seu. Não sou um erudito, não sei o nome desse autor, e tenho preguiça a mais para ir agora buscar ali o livro onde isso é dito. Mas sei que é assim, e o ponto é esse. Que os sinos não tocam a cada novidade enquanto novidade, mas a cada conseguimento. Quanto ao Ibsen burguês, dúvidas nenhumas: os sinos tocaram, o drama não acabou ainda.

Ibsen segundo Savinio e volta: segundo excurso

A viagem que me interessa na Vida de Henrik Ibsen começa logo no princípio, como deve ser, com a contundência calma que estas coisas devem ter, e sem subterfúgios desnecessários, coisa que a literatura não pede, apenas dá, mas para mostrar em cada caso a rigorosa falta que aquilo fazia. Mas adiante.
O plot é no fundo clássico. Um crítico, Savinio; um autor, Ibsen. O crítico elogia o autor, mas não pelas mesmas razões que o autor acha que são nele elogiáveis. O crítico elogia-lhe a superfície, o autor sempre se achou profundo e nada mais vê em si de elogiável a não ser tal profundidade. Moral clássica: o crítico salva sempre a obra da leitura que o autor faz dela. Até porque o autor, já se sabe, é por definição e por tautologia muito apropriada, um autor, não exactamente um leitor. “Não exactamente”, note-se, faz aqui o papel do obstáculo necessário e suficiente para o plot ser o de uma história de salvação e não a de um homicídio. O obstáculo não é o autor, não se trata de matá-lo para definitiva emancipação da obra, porque não se emancipa aquilo que por sua condição intrínseca é já emancipado. O obstáculo é aquilo que o autor julga saber da obra a que chama sua e lhe asseguram civilmente ser sua: pecado de soberba ou de propriedade indevida, só a renúncia a ele salvará ambos, autor e obra. Mas em verdade um autor não pode renunciar. Pode tentar calar-se acerca da sua obra, mas verdadeiramente não pode renunciar a pensar que sabe algo da sua obra: só isso lhe permite continuar a escrever. A renúncia é uma operação da crítica, é aquilo que o crítico impõe ao autor em nome da obra e da possibilidade de a obra ser lida para além do autor. A salvação vem de fora, é obra da graça crítica. Bem entendido, tudo isto se passa no rés-do-chão da estrita imanência. Acompanhado de um cafezinho e de uns biscoitos, porque a CP apaparica os amantes do comboio. Eu já lhes propus a criação de um serviço especial “Ler sem apiadeiros”. Para além de um segundo café ou chá verde e mais uns biscoitos, haveria um pequeno braço articulável onde pousar o livro quando o cansaço dos braços humanos se fizesse sentir. É uma viagem longa, compreendem? Longa porque, a seu modo, vagarosa. Tudo coisas que interessam à leitura, isto é, que são a sua condição de possibilidade. Bom, regressemos a Savinio, o crítico; e a Ibsen, o autor.

Pronto, eu confesso, houve

um momento em que desejei que a Holanda empatasse, muitos mais fossem expulsos, ficassem para aí seis contra seis (qual é o limite mínimo, por falar nisso?), houvesse uma caterva de golos, na segunda parte do prolongamento se pusessem todos de acordo para meter uma das balizas a meio do campo e na outra metade do campo ficassem os árbitros e os bancos das duas equipas, então os jogadores tiravam as camisolas e faziam à sorte quem jogava contra quem, havia mais uma caterva de golos, depois acabava e estava bem assim.

Ibsen segundo Savinio e volta: primeiro excurso

Vida de Henrik Ibsen foi lido no comboio, na última viagem a Lisboa. Isto não é importante, mas é o género de coisas empíricas que ajuda a contextualizar o não sei o quê de algumas leituras. O meio de transporte que é a leitura, por exemplo. Mas teria de dar uma grande volta para o dizer sem ser em chave impressionista ou sibilina, e sinceramente não só não me apetece como tenho ainda algumas coisas para “domingar” antes de enfrentar o Portugal vs Holanda mais logo. Diria apenas que há livros que li nos comboios e cujo acto físico de leitura relembro como se fosse hoje. Dois sobretudo, sobre todos, a vários anos de distância entre si: Um outro mar, de Cláudio Magris, e O mesmo mar, de Amos Oz. Que quero dizer com acto físico de leitura? Que o ritmo de leitura se entrecruzou ao ritmo do comboio e do passar da paisagem e da deslocação para outro lugar. E que não sabendo nunca por que se vai de um lugar a outro, a leitura, nestes casos, não só preenche as razões que não temos como desloca as razões que temos. Sabe-se como se vai de um lugar ao outro: de comboio e lendo, por exemplo; de carro e ouvindo música, é outro exemplo possível. Sabe-se a que se vai: fazer isto ou aquilo, ou mesmo isto e aquilo e ainda mais outra coisa. Mas nunca se sabe por que se vai: que vida diferente ou igual nos espera ou não, neste momento e não em outro, e sequer se o teremos compreendido na volta. A leitura, tendo-se tornado a própria viagem, dispõe-nos a re-ler, isto é, a viver num ritmo que não é bem o nosso, ou que não conhecíamos como nosso, mas estava dentro dele e se torna visível agora, até de todo se voltar a confundir connosco. Como quando alguém vem ao nosso encontro, e em vez de olharmos o rosto que se aproxima olhamos os pés que se deslocam. A pessoa que assim chega a nós é um pouco diferente, mas estava toda dentro da pessoa que conhecíamos. Nós é que não a sabíamos. E quando a acabarmos de saber, conheceremos uma pessoa diferente, embora pudéssemos dizer que conhecemos apenas mais da pessoa que já conhecíamos. Mas nunca se conhece apenas mais. Nunca se acumula, nestas coisas — reestrutura-se. Nunca apenas mais uma viagem, mas uma vida imperceptivelmente diferente nessa viagem. A vida de Henrik Ibsen? De Alberto Savinio? A minha? Poderia tentar responder. E classicamente, dizer de cada uma à vez, e da mistura das três, e do ponto em que as quatro respostas seriam rigorosamente irrelevantes. Isso é a vida, e isso não esgota a vida. Continuaremos, portanto.

Ibsen segundo Savinio e volta: golpe (de) interpretação

"Não existe qualquer indício na obra de Ibsen de que ele tenha compreendido o valor desta «não profundidade», desta «superfície». Que importa? A sua obra final e mais importante é, toda ela, uma descoberta da superfície e isso chega e sobra.
A parte final e mais importante da obra de Ibsen — aquela em que Ibsen «descobre a superfície» — é para alguns (Weininger) a parte «burguesa», menor, de renúncia, em contraste com a plasticidade orgulhosa e «volumosa» do Peeer Gynt e das líricas. Este erro de avaliação durará enquanto durar o erro de considerar as trevas mais profundas do que a luz, a profundidade mais profunda do que a superfície.
O próprio Ibsen sofria da ilusão da profundidade. Esta ilusão nunca se varreu da sua cabeçorra maciça e hirsuta de northmann. Essa ilusão levou-a ele consigo para a tumba e, lá em baixo, continua certamente a atormentá-lo — o grego desce para a sepultura limpo, despido de recordações, de nostalgias, de ilusões."
Alberto Savinio, Vida de Henrik Ibsen

Ibsen segundo Savinio e volta: aproximação

"Northmannaland, a que, com uma palavra mais doce, chamamos Noruega, é a «última Grécia» da Europa. Para já. E desde que o seu rosto surgiu à luz do dia.
(...)
Entende-se por «Grécia» uma forma de pensar, de ver, de falar, que a mente, os olhos, os ouvidos podem captar «num repente»; podem captar num único pensamento, num único olhar, numa única audição. Entende-se por «Grécia» um espírito portátil e, nos modelos mais elaborados, de trazer no bolso. Entende-se um cérebro, um olho, uma voz, comparados com os quais qualquer outra voz emudece, qualquer outro olho cega, qualquer outro cérebro se torna «matéria cinzenta». Entende-se a faculdade, concedida a algumas pessoas e a outras negada, de compreender a vida do modo mais arguto e, ao mesmo tempo, mais «astuto», mais lírico e, ao mesmo tempo, mais frívolo (há nos nossos deuses uma certa leveza)...
Não digo «mais profunda», porque a claridade ilumina até ao âmago dos abismos e destrói a profundidade. «Profundidade» implica «escuridão». A profundidade permanece mas muda de natureza, muda de «iluminação», muda, por conseguinte, até de nome. «Profundidade clara» é demasiado antitético, demasiado ao arrepio da linguagem e algo reservado a poucos. Deveríamos dizer «superficialidade», se esta palavra não tivesse má fama, porque a luz traz à superfície até mesmo o fundo da profundidade mais profunda."
Alberto Savinio, Vida de Henrik Ibsen

Por causa da vaidade, sim, mas

também porque já não me vêem sem o blog, o que não sei se é bom ou mau (e o mais provável é até não interessar nada sabê-lo):
"O melhor que posso dizer das suas aulas é que ao fim das duas horas estou cheia de fome. O meu pequeno-almoço é dietético, mas à mesma hora costumo estar ainda cheia de sono. Ponha lá isto no seu blog. E não se esqueça do lancinho que nos prometeu, com vista para o mar como se todas fôssemos a Leitora."
Do inquérito anónimo de avaliação da disciplina

Misreading 1 [até tinha pernas para andar]

ou da influência do processo de bolonha numa resposta de exame: “entre outras coisas, a literatura distingue-se da ciência porque faz a «acreditação do irreal»”.
Dissesse "possível" em vez de "irreal", e estaria a re-escrever Aristóteles com proveito.

Os trabalhos e os dias (14)

É um pouco «linguagem privada», a propósito de mais uma reunião igual a tantas outras, mas sabêmo-lo da vida de todos os dias, sobretudo nos tempos de crise, quando o mais fácil é sempre construir o bode expiatório:

"A consciência do esforço inútil e do trabalho perdido ainda é uma das grandes emoções estéticas que restam a quem se preocupa com as coisas que ainda restam."

Pessoa, Crítica, Assírio & Alvim, p. 91

Multiplex 14

François Ozon, Le temps qui reste
— Em resumo, indecisa. Não sei se tome o filme pela sua linguagem privada, porque Ozon é muito idiossincrático, e a questão do desaparecimento, tal como ele a filma desde Sous le sable, é um território muito pessoal, ou se veja o lado da linguagem pública, um certo silenciamento da morte nas sociedades contemporâneas, a compulsão privada a que a morte, hoje, parece obrigar, e que de resto a personagem vive com alguma naturalidade: isso de não contar a ninguém, família, amante, amigos, a não ser à avó, porque também ela está perto da morte.
— E porque não as duas coisas? Mas eu percebo-te. E alguma coisa no filme me parece reacção “adolescente” à morte. Ele não conta, porque pressupõe que ninguém o compreenderá. Mas nem sequer tenta, o que talvez diga que projecta nos outros a sua própria revolta. Romantismo de ambos, personagem e realizador, que também em nenhum momento deixa entender que os outros pudessem entender, apesar da cena com o pai e, mais tarde, com a irmã.
— De resto, sobriedade absoluta e um Melvil Poupad absolutamente magnífico.
— Arrepiante mesmo, Leitora. E para além disso, conseguir filmar a magreza de um actor como avanço da morte, até terminar cadáver anónimo numa praia, não é para qualquer um.
— Dificilmente esquecerei essa cena, é verdade.
— Que fiquei com a impressão de que remete para o Cristo morto de Holbein, o tal de que Dostoievski disse que ao vê-lo era praticamente impossível acreditar na ressurreição.
— Isso já são coisas tuas, Luís. Se calhar todo o corpo jazente, ocidentalmente falando, é ainda memória crística. Mas se ao vê-lo era impossível acreditar na ressurreição, bem que pode pertencer ao filme...

Trocas

A Leitora leva o Neil Diamond, sem new age e zen de pacotilha, eu fico com os Sonic Youth, que estão antes da minha idade e depois da dela. Troca justa, e não propriamente de velhos cromos. Antes pelo contrário, bem antes pelo contrário.

A Leitora, no seu infinito particular (XXII)

Manolo Valdes, Retrato de mujer


Poderia ser eu própria
mas sem o dom da admiração,
quer dizer — alguém completamente diferente.

Wislawa Szymborska, Instante

Os trabalhos e os dias (13)

De coisa mais ou menos vaga para daqui a uma década, Bolonha passou de repente a urgência “para ontem” e caderno de encargos, o mais tardar, para se resolver no próximo ano. A sucessão de legislação e de normas técnicas foi coisa bem portuguesa: o prazo para reformulação de cursos e propostas de novos curso acabava em 31 de Março, e foi nessa data publicado em DR a última das normas técnicas para a instrução dos processos (que oficiosamente as instituições tinham recebido uma semana antes, e que oficialmente continha umas pequenas diferenças sem importância...). Entregues os dossiers, as instituições estão a responder, em contra-relógio, a pedidos de reformulações ou de acrescentos técnicos solicitados pelo Ministério. Eu até nem queria muito falar sobre o assunto, mas a verdade é que tem sido uma parte substancial e tremendamente desinteressante, salvo um ou outro aspecto, destes “trabalhos a dias”. Assim, decidi apanhar a boleia do post bolonhês de Miguel Vale de Almeida, que subscrevo por inteiro, e acrescentar-lhe umas notas “laterais”, a ver se “retiro isto do sistema”, como dizia o outro, e passo a coisas mais interessantes:

1. Bolonha foi e é uma questão política (possibilidade de o espaço europeu de ensino superior competir com o americano, o que em si mesmo tem muitas outras questões neo-liberais implícitas), e como questão política até estava disposto a discutir a bondade dos seus objectivos e as implicações daí decorrentes. Ter transformado Bolonha numa questão aparentemente científico-pedagógica, com largas discussões sobre combinatórias (3+1, 3+2, 4+1, 5 integrando 3+2) foi a prova final de que os governos portugueses consideram a) que o espaço público português não tem maturidade para a discussão eminentemente política, mas apenas para questões paroquiais de especialistas e b) que o espaço público daquela “classe” que, pela sua formação e responsabilidade, deveria constituir uma elite capaz de distinguir o que em cada caso está em causa, não foi capaz de o fazer, pelo menos na sua larga maioria.

2. Que tenha de ter sido a quantificação do trabalho do aluno a alertar para aquela miudeza de que há professores que exigem mundos e fundos de trabalho aos seus alunos, porque a sua disciplina “é que é”, só mostra o autismo e a impunidade em que descambou a “autonomia científica e pedagógica” do professor na orientação da disciplina a seu cargo — autonomia que, em sede teórica, e para que não haja mal-entendidos, defendo com intransigência, mas que tem de ser negociada e argumentada na colegialidade dos órgãos científicos e pedagógicos.

3. A burocratização dos ECTS confirmou os refinamentos perversos que eram expectáveis. Algumas universidades receberam fundos para promover o processo e fizeram-no de forma “célere e exemplar”: sem inquéritos aos alunos, sem ouvir os professores, numa regra de três simples (tinha tantos créditos num total de x, passa a ter tantos ECTS num total de y), que depois as administrações limaram a “olho”, acrescentando mais uns “pozinhos” àquelas disciplinas a que todos chamam “cadeirões”. Eu nem consigo dizer que isto constitui propriamente uma fraude, porque não vi maneira, mesmo tendo seguido todos os trâmites razoáveis, de chegar a conclusões equilibradas que não repusessem, mais ou menos, os valores a que se chegou pela regra de três simples. A ver se nos entendemos: os anteriores currículos não foram feitos propriamente por extraterrestres, mas por nós próprios...

4. A generalidade das licenciaturas passará a três anos, e essa redução, como diz bem MVA, faz-se muito à custa do desaparecimento das Ciências Sociais do currículo. Mas esta é a primeira etapa. A segunda etapa, é que a entrada no mercado de trabalho, para as licenciaturas específicas das ciências sociais, se fará “tipicamente”, como agora se diz, com estes três anos, ficando a “obrigatoriedade” dos masters para outras áreas.

5. Quanto à competitividade, há um problema anterior que se deveria colocar. Entre instituições de ensino público, faz sentido haver competitividade sem antes se ter definido uma rede que racionalize o erário que o Estado atribui para o ensino superior público? Vejam-se os anúncios que universidades e politécnicos públicos fazem nos jornais, o que gastam na promoção das instituições e dos seus cursos, e temos este belo paradoxo: o Estado paga para que as instituições disputem entre si a realização de um bem público, o mesmo Estado que deveria ter criado apenas as instituições necessárias à realização desse bem público. Mas a política, quanto a “esta matéria”, como também se diz, tem sido a de “deixar funcionar o mercado”: no próximo ano, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior nem precisará do relatório de avaliação da OCDE, bastar-lhe-á varrer os cacos das várias instituições que se partirão por falta de alunos, a começar pela maioria dos politécnicos. Gostava muito de estar enganado, mas a baixa demográfica, a perda de 40% dos alunos entre o 10º e o 12º ano, e o financiamento indexado ao número de alunos, não darão outro resultado. Este ano já foi de alarme, o próximo Setembro será de rupturas. Nenhuma assimetria se corrigirá, recursos humanos altamente qualificados serão jogados fora com a água do banho, e haverá certamente gente a dizer que a rede se constituiu por uma muito salutar “selecção natural”. A opinião pública ficará descansada, e o Ministro Mariano Gago, que grandemente aprecio mas de quem “nesta matéria” esperava bastante mais, não terá tido necessidade de medidas políticas saneadoras, reformistas ou o que quer que seja. Fará o papel de um coveiro discreto, no funeral de uma morte anunciada há muito. Pensei que a política fosse outra coisa, mas eu engano-me muito, ou não fosse dessa área acientífica que é a literatura...

Na linha do mar, Deco

Não é caução poético-intelectual, é quase empírico. Eu explico. Chama-se Bar Planetarium, tem toda uma frente envidraçada. Do outro lado da rua é o paredão. Para lá do paredão, o mar. O mar de Moledo. Olha-se para o écran ao alto, em pausas breves para o mar. Estava nortada, mas a tarde ganhou luz, endiabrada na agitação forte lá longe. A dona tem a sua mesa própria, e o cascol das ocasiões. Vi lá quase todo o Europeu. Ontem foi bom. Quando Deco está bem, quase toda a equipa fica melhor. Cristiano mais adulto no aguentar dos adversários, Scolari bom psicólogo em dar-lhe o penalti. Risada geral com a fífia de Ricardo. Só isso, risada geral. No fim mesmo, de uma mesa veio o mote: agora vamos ao México, e Angola vem connosco. Bebemos a isso e voltámos à vida.

Frederico Lourenço

Não fosse a Leitora, e entre futebol pelo canto do olho e trabalho, tinha-me escapado este motivo de contentamento que é o Prémio Europa – David Mourão-Ferreira para Frederico Lourenço. Personalidade cultural emergente, diz o prémio. E diz bem. Porque há muita vida ainda para criar. Por isso a ilustração vai com a Odisseia, e não com nenhum dos seus romances: metáfora da viagem que ainda há pouco começou. Saberemos de mais escalas, que a vida nos seja assim longa. Com passado traduzido e pensado, e presente inventado para mais verdadeiramente acontecer.

Sentimentais

Sexta à noite é dia de piscina. Muitas vezes entramos e o funcionário está a ouvir futebol na rádio, saímos e vamos ainda a tempo de saber como ficou o jogo. Ontem, ouvia o Angola-México. Espera, Angola-México na rádio portuguesa? Isso mesmo, e com um tremendo torcer por Angola, assim como se fôssemos nós. À saída, vesti-me ouvindo em directo os últimos cinco minutos, vesti-me de modo a durar os cinco minutos. Alegria geral com o empate, o primeiro ponto de Angola no seu primeiro mundial. Remorso do homem branco? Nunca tive uma quinta em África, nunca vivi em África, sei da história o suficiente para me distanciar de paraísos perdidos e de remorsos inúteis e ademais paternalistas. Mas África fascina-me, e por certo irei lá mais vezes. E em alguns países há um ar de família em tudo, como quando acompanhava os meus pais aos seus Trás-os-Montes e me iam dizendo que aqui brincaram não sei a quê, e ali aprenderam a nadar, e acolá era a escola e houve uma D. Não Sei Quantos (mas que merecia que eu soubesse o nome) que recomendou o meu pai para o seminário. Nada é tão estranho como a infância de quem sempre conhecemos adultos. Isto é, tão estranhamente familiar. Tão retroactivamente nosso. Fica-se sentimental na exacta medida em que, de alguma maneira, comungamos dos sentimentos de quem o viveu. E assim de repente não vejo nenhum mal nisso.

6-0 e foi um grande jogo?

Vou já programar o video para o resumo alargado. Com que então a Argentina, hem?

Ponto de vista pós-grouchiano

O mais recente mail a circular entre os ex-casmurros comentava o “efeito de assinatura” em línguas de fronteira, estribando-se na imagem supra. Que do sexo ao futebol e retorno o caminho é bastante percorrido, não é novidade para ninguém. Mas a publicidade, responsável por algumas das mais espectaculares re-conceptualizações da contemporaneidade, dá aquele toque de graça com o qual os conceitos transitam mais velozes entre a retina e o cérebro (sobretudo o reptiliano). E agora que já divaguei intelectualmente sem dizer nada, o que é uma arte que sobre ser casmurra é das de mais difícil conseguimento, concluo em linha recta sem autorização do ex-clube para a reprodução da supra, mas à confiança de despautérios vários mais os imprevisíveis do futebol. Em resumo, e como o Groucho por certo diria, quem, na condição de espectador, gostando de futebol, isto é, do imprevisível, assinaria, em primeiro lugar ou sequer em mero complemento, aquilo que por definição é previsível e mecânico? E contudo, uma empresa poderosa gastou dinheiro na firme convicção de que sim, esses espectadores existem. Eis o mistério. Confesso que está para além das minhas capacidades. O que não é surpresa, porque nós, lá no clube, nunca nos consideramos lá muito capacitados para estes mistérios. Pelos vistos, trabalhar a solo também não aumenta a potência.

Elogio do resumo alargado

Claro que abanquei para o Portugal-Angola. E depois daquele slalon do Figo e das asas do Pauleta, o mundial começou. A amiga circunspecta deixou o aviso: nestas coisas nunca se sabe se o gajo é um ejaculador precoce ou um tipo de vastos recursos naturais. Fomos jantando e conversando, e lá mais para o fim até não nos importávamos que Angola empatasse, assim como assim Portugal é sempre o tal das contas difíceis, se não mesmo impossíveis. Depois disso quase mais nada, tirando um resumo ou outro nos telejornais. Até ontem, no zapping final da noite para ver como ia o mundo. A Rtp1 estava a começar o resumo alargado do Alemanha-Polónia. Acho que ainda ninguém fez o merecido elogio dos resumos alargados. Mesmo o pior jogo fica um bocadinho suportável. Mas um bom jogo — ah, esse fica um deslumbramento. Só não percebo porque é que ainda não investiram para descobrir a fórmula de fazer o resumo alargado em directo. Eu sei que é um problema de física complicado, mas que diabo, o futebol interessa milhões. Voltando ao ponto. O resumo alargado do Alemanha-Polónia foi um deslumbramento — há mesmo um mundial a decorrer. Lá pelo meio — porque um resumo também dá para pensar, não dá é para a gente se entediar —, quando o keeper da Polónia defendia este mundo e o outro, pensei que isso não era uma boa notícia para nós, o Ricardo não é capaz destas coisas. E depois, como nos velhos filmes de cowboys, os que se tinham mostrado bons conseguiram derrotar os outros mesmo ao cair do pano. Grande história de suspense, câmaras ágeis e de ângulos abertos, final feliz. Virei para a Sic, outro resumo alargado. Mas que é isto? Estou sem som, não há legendas nenhumas, uns estão inteiramente de verde e marcam três golos, outros de branco e marcam um golo, distingo um ou outro nome nas camisolas mas fico na mesma, nem no final a ficha do jogo. Mas que jogo é este? Andam todos ao monte, de vez em quando a bola lá corre mais um bocadito — espera, conheço este jogo, espera lá, é isso mesmo, isto éramos nós a jogar no liceu, noções mínimas de estratégia, basicamente todos em cima da bola, muitos golos, éramos felizes, estes aqui também, o futebol é que nem tanto. Eu fiz o elogio do resumo alargado? Pois, mas é como tudo, ele há resumos e resumos.

Somethin' else

Uma vez ao ano, pelo menos, tomo esta outra coisa. Não preciso de decidir quando, ela vem ter comigo. Nem pergunto porquê, ela lá sabe. Agora foi a seguir à trovoada e à chuva torrencial no meio da noite de ontem. Escritório, carro, jogging — roda interminável. Umas termas, um retiro, qualquer coisa assim. E a vida continua por sobre isso. E cada vez mais a certeza de que há uma linha recta daqui a Kind of blue (que também me acontece pelo menos uma vez ao ano). Não que isso interesse muito, ou que eu saiba dizer musicalmente porquê, mas há. Qualquer coisa de melancólico mas não choramingas, de espaço aberto mas não perdido, de finito mas não aflito. E como vai começar a faixa entre as faixas, digo só o nome (que é todo um programa) e calo-me: “Dancing in the dark”.

Multiplex 13

Sergio Tréfaut, Lisboetas

- Conhecia estes lisboetas, Leitora?
- Só das notícias, e pouco. O que mais me impressionou foi perceber que afinal passava por eles todos os dias e não os via. Politicamente, até acho grave esta minha cegueira. No resto, é um documentário que cruza histórias, e uma cidade é sempre isso, um cruzamento de histórias que nós nem fazemos ideia que existem.
- A mim impressionou-me logo o início, o rosto incrédulo daquele jovem negro quando percebe que tem de voltar aos serviços com mais uns papeis. Aposto que não lhe disseram nada da primeira vez, e que quando voltar faltará ainda outra coisa, e por aí fora.
- A mim impressionou-me a seguir o mercado de trabalho clandestino, os emigrantes à espera, os capatazes que vêm, quanto pagas? quanto queres? o jogo do gato e do rato, primeiro eu vejo como trabalhas, depois digo um preço, se queres queres, se não largas.
- E depois a poesia, os miúdos na água da fonte.
- E o coração do mundo, Luís, o coração do mundo.
- Que coração do mundo? As crianças?
- Não. A ambulância dos médicos do mundo, aquela enfermeira negra que trata o pé do ucraniano, e que para a ficha lhe pergunta: há quanto tempo estás aqui, em Angola?
- Ah, isso... A voz tremeu-lhe quando deu pelo lapso, ou ouvi mal?
- Ouviste bem. E ela disse certo. Em muitas coisas, Lisboa, como muitas cidades, é Angola ou ainda pior.
- Mas aqui reivindica-se que todos são lisboetas, é um avanço.
- É um desejo, um pouco de realidade, e trabalho para uma maior realidade.
- Ou seja, é também cinema.

O "imposto homem"

Do Nouvel Observateur, enviado por Manuela Ameida:

Cohn-Bendit: Vous savez à chaque grande manifestation qui attire le public il y a une recrudescence de la prostitution. Chez moi, à Francfort, pendant la période de la Foire du Livre on a le même phénomène. Avec une grande concentration d'hommes, qu'ils soient supporteurs ou intellectuels, il y a une demande...
(...)
Cohn-Bendit: Vous connaissez beaucoup d'hommes qui avouent fréquenter les bordels, à part Houellebecq? A un moment donné il faut penser un système qui laisse le choix aux filles de s'en sortir, de se réinsérer en dénonçant leur proxénéte. Je suis pour que l'État financent ce genre d'opération.
Nouvel Obs.: Cela demande de gros moyens...
Bendit: Oui. Il faut instituer un "impôt-homme"... Dès leur naissance, les hommes devraient payer une taxe por protéger les femmes de la prostitution.
N.O.: Vous êtes sérieux?
Bendit: Absolument.

Os trabalhos e os dias (12)

Uma declaração de voto
Longe de Manaus é um romance policial que não é policial. Como em todo o romance policial, a ordem do mundo é rompida: há crimes e suspeitos; mas ao contrário das regras do género, a ordem não é restabelecida: a investigação não apura uma verdade, limita-se a confirmar incertezas várias que quase configuram uma decepção metafísica.
Este mundo partido, sendo o mundo tout court, é desde logo, e com uma acuidade inteiramente sociológica se não fosse reinvenção literária, um Portugal contemporâneo de onde as personagens vão desaparecendo porque engolidas por um passado traumático, em si mesmo um crime maior porque silenciado. A guerra de África, a emigração para o Brasil, a perseguição dos judeus, mas também, no pós 25 de Abril, novas públicas virtudes e vícios já nem tanto privados, fazem de Longe de Manaus um romance onde se investiga, com os meios que ao romance assistem, o medo e uma certa atmosfera cinzenta, opressiva, que difusamente caracterizam a contemporaneidade portuguesa.
Disse com os meios que ao romance assistem, para poder agora dizer que o maior conseguimento literário de Longe de Manaus é a sua falsa legibilidade. Solidamente ancorado numa história que não escamoteia peripécias nem promessas de desenlace a contento dos arquétipos do género, as digressões, as enumerações, os apontamentos poéticos e reflexivos sem uma palavra a mais que seja, vão adensando imperceptivelmente o romance, até ser já demasiado tarde para abandonar uma obra que afinal nada mais tem para nos oferecer senão aquilo de que é feita toda a literatura que deveras interessa: perguntas sem resposta, ironia acerada sobre um mundo que vai sempre ficando mais longe do encantamento com que um dia nos prometeu a vida, e um restos discretos de ternura para a passagem do tempo. Longe de Manaus, por certo, mas perto do que é ainda possível.

A Leitora, no seu infinito particular (XXI)

Stuart A. Staples, Leaving songs
- Quando a chuva vier, então.
- Dizem que pode ser já hoje à tarde, mas amanhã e quarta é quase de certeza. Recapitulemos, Leitora, a ver se se faz o post.
- Comecei pela voz, tudo se resume à voz. Aquele casulo em que ela ressoa, tanto melhor quanto mais intrauterino.
- Sim, porque há várias espécies de melancolia, e esta não é cósmica, não é a melancolia dos grandes espaços abertos ou da noite sideral, é a melancolia de um quarto pequeno, chuva lá fora ou pelo menos inverno rigoroso, é uma voz quente e cheia mas melancólica, sem heroicidade.
- Estranhei os duetos, sabes? Mas com a Lhasa até funciona bem. Mas estranhei, não é o tipo de voz que faça companhia. Mas estranhei sobretudo estar a ouvir esta música no verão. É uma música que exige frio, para nos aquecermos com ela. Suponho que será um dos paradoxos de alguma melancolia, que ela aqueça os corações. Tu que achas, Luís?
- Talvez chova amanhã. Então saberemos melhor. Ou então guardamos para o Outono. Curioso é que com a música clássica e mesmo com o jazz não sinto tanto esta ligação atmosférica. Bom, no jazz um pouco. Quero voltar ao Rubacalba, mas com este tempo parece que só o frio muito nocturno se lhe adequa.
- Quando a chuva vier, então.

Os trabalhos e os dias (11)

Sorry, no gossip acerca do prémio de romance e novela ape/iplb 2005. Apenas aquilo que é do conhecimento universal. A saber. Para evitar qualquer influência externa, a composição do júri é mantida em segredo e cada um dos seus membros mandado para diferentes países estrangeiros ler os vários caixotes da produção romanesca portuguesa. A mim, por exemplo, porque sou caloiro nestas andanças, mandaram-me para Palma de Maiorca. Mas há destinos melhores, ao que ouvi dizer. Nas datas aprazadas, regressa-se à capital do reino. As reuniões decorrem à porta fechada, com vigilância policial reforçada, espraiando-se os membros do júri pelo palácio da sede da APE, que só à sua conta ocupa metade da rua de S. Domingos à Lapa. Cada um dos cinco elementos fica isolado numa sala, a discussão é feita por intercomunicador, que tem a particularidade de distorcer as vozes, tornando-as todas rigorosamente iguais, mecânicas, insuportáveis mais de três minutos seguidos. Quer-se com isto evitar o estabelecer de quaisquer laços de intimidade ou de mera simpatia entre os membros do júri, de modo a que toda a discussão se processo dentro dos estritos limites da razão teórica. Nunca se sabe quem diz o quê. Findo o prazo de discussão, cada membro do júri vota secretamente. Apurado o resultado, tira-se à sorte quem votou em quem. Os que por sorteio tiverem votado vencedor, recebem pelo seu trabalho o equivalente ao montante do prémio. Os que tiverem votado vencido, recebem o dobro. Findo o seu trabalho, o júri tem direito a passar automaticamente à condição de suspeito de algumas extraordinárias manigâncias. A vox populi deste ano é que Cavaco Silva terá feito ao júri uma “proposta irrecusável” no sentido de premiar um escritor apoiante da sua candidatura. Como por acaso todos os membros do júri estiveram na comissão da honra da candidatura do emérito Professor, a coisa foi fácil. Mesmo assim, como negócios são negócios, o chequezito que está ali há-de-me pagar umas merecidas férias num lugar mais snob que Palma de Maiorca. São só mais umas quatro ou cinco versões das Goldberg, e devo ter terminado por este ano lectivo. Para onde vou? Se não se importam, vou sozinho.

Pessoal anti-futebol, de que

se queixam vocês, afinal? A televisão, caso ainda liguem a isso, não dá mais nada, de modo que escusamos de nos preocupar de todo a saber como vai o mundo ou se haverá alguma coisa de interessante a passar na caixa. As gentes não falam de outra coisa, o que permite que nos retiremos sem problemas de consciência para o nosso vasto mundo interior. As praias estão desertas, os cinemas também, por definição onde não houver um ecran gigante está-se em completo sossego. De que se queixam, afinal? É um mês de férias, meus amigos. Eu estou a aproveitar lindamente. Por acaso vou ver um joguito ou outro, mas é só em acrescento e complemento das férias... No mais, não me queixo. Bem pelo contrário.

Memória recente com filme em fundo

Como disse, Lisboa começa-me, ou melhor, poderia começar-me, quando de uma fresta se vê o rio.
A fotografia pertence a mais uma das excelentes séries de O céu sobre Lisboa, e lembra-me vagamente o projecto do dono da tabacaria de Smoke, o filme de Wayne Wang com argumento de Paul Auster. Todos os dias, à mesma hora, ele fotografava a mesma esquina da rua. Durante anos e anos. É bom, quando alguém habita um lugar dessa maneira.

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Auster 1. “As personagens de Auster, como as de Kerouac ou de Carver antes dele, têm a tentação irresistível de se deixarem ir. E descobrem, como a maior parte de nós, que o mundo é fascinante quando baixamos os braços” [O Franco atirador]

Auster 2. “Pessoas e a suas narrativas íntimas e vulgares, eis o material que interessa a Auster. Nunca consigo deixar de me surpreender com o talento inato dos escritores americanos para a pequena História do quotidiano.” [Auto retrato]

De facto, “torna-se difícil assentar a vida na normalidade quando num telefonema inócuo de meio da tarde ouço a minha mulher a dizer, de forma indolente, «eh pá que barulho, não sei se foi uma porta a bater ou um tiro na rua»” [Irmaolucia]

Vou nessa


Adepto angolano:
"Se perdermos, faço festa.
Se ganharmos, faço escândalo!"

A coisa política da intencionalidade

Eu percebo-o, meu caro João Paulo Sousa. Mas deixe-me só explicitar a coisa política que subjaz ao termo intencionalidade. Quando a iniciativa legislativa parte da Assembleia da República, pode ter a certeza que não há nenhuma palavra ou vírgula na lei que não tenha sido pesada e escrutinada — os partidos políticos de qualquer maioria têm direito a um rol imenso de assessores que estão lá para isso, para já não falar dos juristas deputados e dos juristas que não o são mas pertencem ao partido, e dos juristas que apoiam os sectores profissionais visados pela lei e que são abundantemente consultados, etc, etc. Qualquer deputado lhe pode confirmar isto.
Quando a iniciativa parte de um Ministério, a coisa é completamente diferente. Acredita se eu lhe disser, por exemplo, que a maioria dos Decretos-Lei relativos ao Ensino Superior (Politécnico e Universitário) que foram publicados nos últimos quinze anos foram redigidos por representantes deste sector e não pelos Ministérios? A coisa explica-se de uma forma simples. Os representantes do sector pediam alterações a certos aspectos legais, ou introdução de regras para novos problemas, e em vez de se limitarem à discussão e persuasão política, levavam também o decreto-lei já feito: acelerava-se o processo, se houvesse acordo dos Ministérios, e tinha-se a certeza de que a redacção ficava conforme.
É que quando a iniciativa é totalmente do Ministério, raramente a proposta de redacção inicial escapa a ambiguidades ou erros grosseiros face à intenção política assumida pelo Ministério. Os assessores de Ministros e Secretários de Estado não só não são juristas como não têm que conhecer em todos os seus detalhes os múltiplos aspectos, por exemplo, das carreiras do pessoal docente. A regra do jogo é que compete aos Sindicatos, Ordens ou estruturas similares chamar a atenção para essas ambiguidades, erros ou omissões, e propor as alterações.
Neste contexto, a intenção do legislador não é coisa menor, como compreenderá. E naquilo que o preocupa, não há intenção de alterar seja o que for, a não ser fixar regras mais apertadas para acumulações, requisições e destacamentos. Não sou porta-voz do Ministério da Educação, como é óbvio. Mas a carreira do básico e secundário tem repercussões na organização do ensino superior, pelo que as suas linhas gerais também há muito nos foram expostas pela tutela. E das duas uma: ou a Ministra é maquiavélica no pior sentido do termo, ou o redactor não percebeu a ambiguidade que estava a introduzir. Ora, redactores assim é o que mais há, e nem são propriamente incompetentes por causa isso, pelo que podemos poupar à Ministra um epíteto que já está abundantemente provado que não lhe cola: se há algum problema com a Ministra, é uma certa falta de tacto político nas suas intervenções, diz demais o que lhe vai no coração...
Já quanto ao JPS achar que “é grave e inquietante que o legislador possa determinar que a leccionação é incompatível com actividades privadas não remuneradas”, a conversa teria de ser mais longa e mais político-filosófica. E com uma correcção inicial: a proposta de Lei, neste aspecto igual a todas as da função pública, diz “actividades ou funções de natureza profissional, remuneradas ou não”. Ou seja, não está em causa que eu pertença ao rancho folclórico da terrinha ou ao clube de sueca “Os agarrados” ou a coisas assim cujas estruturas não têm fins lucrativos. E ficando os direitos de autor fora disto, o resto, à partida, parece-me razoável. Mas às vezes esta conversa não é tão evidente quanto parece.

Saltos altos

A mulher que vejo a alguma distância, enquanto almoço, está vestida para matar. Nós, os normais, debruçados sobre o nosso tabuleiro de cantina, vamos observando o andar de passerelle. Há olhares diferentes a segui-la: altas percentagens de testosterona, avaliação ambígua de algumas mulheres. Cabelo platinado, decote laranja pálido, saia mata-hari transparente, saltos altos agudíssimos. Uma agressão viva, um grito estridente por sobre o vozear arrastado do shopping. Principalmente os sapatos. Juro que nunca compreendi. Quer dizer, percebo o mecanismo que os determina, mas tenho dificuldade em aceitar que alguém acabe por se sujeitar a ele. A mulher afasta-se, mas os sapatos ferem-me ainda. Sem dúvida, uma mulher percebida, quer dizer, que é um ser percebido — Berkeley, Bourdieu, lá se me vai o almoço. Mas eis que dentro de mim chamam Sofia Coppola para receber o óscar. Ela vem de negro, vestido singelo de alças, caminha calma no seu centro de gravidade interior. Sapatos rasos negros, sapatilhas de ballet talvez, qualquer coisa assim plana como a terra que humanamente se habita. Com a inteligência da discrição. Querida Sofia. Posso acabar de almoçar em paz.

Ambiguidade (espero que) sem intencionalidade

Meu caro João Paulo Sousa, concedo tudo quanto a uma redacção da proposta de lei que resulta ambígua. De facto, no Estatuto da Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico, o artigo 35º relativo à exclusividade (que decalca o universitário) diz expressamente, no seu número 7, o seguinte:

7- Não envolve quebra do compromisso assumido nos termos da declaração referida no nº 3 [declaração de exclusividade] a percepção das remunerações decorrentes de:
a) Pagamento de direitos de autor;
b) Realização de conferências, palestras, cursos breves e actividades análogas;

Mas esta é uma explicitação que pode vir a estar perfeitamente na lei. A ambiguidade não me parece de todo intencional. O que nos corredores se diz, e se diz há muito, é que as restrições às chamadas “acumulações” não visam sequer as explicações, que é um mundo que largamente se desenrola à margem das tributações IRS, mas sim o desempenho de funções docentes em qualquer outro sub-sistema de ensino, público ou privado. E porquê? Porquê há excedente de mão-de-obra qualificada, não é necessário “sobrecarregar” os que já estão no sistema. Por princípio de coesão social, até estou de acordo.
Quanto ao escritor e ao pintor, diria que não vale a pena complicar. Para IRS, ou seja, para receber os direitos de autor, tem de estar inscrito como profissional. Ponto. Se vive só disso, se recebe mais disso do que da sua actividade principal, ou se recebe uma miséria, só tem importância para o facto de ser obrigado ou não a contabilidade organizada, etc, etc. O engraçado aqui, filosoficamente falando, é que para o legislador a concepção que existe de trabalho intelectual e artístico é toda ela devedora das teorias da “inspiração”. É por isso que a crítica e a tradução não entram nos direitos de autor: para o legislador, não há lá “inspiração” nenhuma, apenas trabalho profissional puro e duro, já não é o fazer a partir do nada, mas o trabalhar sobre. Contestável? Sem dúvida. Mas eu não levantaria muitas ondas. Quando o legislador começa a filosofar, dá quase sempre asneira. E a asneira, a acontecer, será inevitavelmente a de considerar que aquele um por cento de inspiração que até nós estamos dispostos a conceder como o irredutível artístico, é afinal trabalho profissional. Que o ministério não nos ouça e se mantenha longe das leituras “perniciosas” da teoria da literatura ou dos estudos culturais...

Nem tanto, parece-me...

Acho que há algum equívoco nisto, meu caro João Paulo Sousa. Este artigo, creio bem, sempre existiu. Existe na minha carreira, tal e qual, desde sempre. Isto nunca colidiu com o auferir de direitos de autor provenientes da “actividade artística, científica ou intelectual” (pintura, romance, enasaio, conferências). Não permite é outra actividade profissional por conta de outrém, paga ou não, ou ser empresário por conta própria. Não me pergunte pelas miudezas jurídicas que justificam isto (outros as saberão), mas é uma prática estabilizada.

Pássaros, blogues e dois coelhos

Chegado a casa, em desaceleração, banho-cama sem net, acordei hoje bem mais cedo do que habitualmente. Janela aberta antes do crescer do calor. No fundo do revaldo, dois coelhos.

Só depois os pássaros.

A Alexandra teve a gentileza de me poupar o trabalho que em Lisboa não tinha condições de efectuar, e mandou-me os links. A sua pergunta, uma resposta e outra resposta (tinha-me enganado em quem respondera, as minhas desculpas, mas as histórias são mesmo assim, quem conta um conto, retira-lhe um ponto).

Agora, em direcção ao mar, quer dizer, à Escola, quer dizer, ao mar (é também por isto que sou um tipo com sorte).

Grande Prémio de Romance e Novela APE/IPLB 2005

Para Longe de Manaus, de Francisco José Viegas (Asa).

O júri, constituído por Teresa Martins Marques, Serafina Martins, Liberto Cruz, Luís Fagundes Duarte e Luís Mourão, atribuiu o prémio por maioria [Liberto Cruz e Luís Fagundes Duarte votaram em A voz da terra, de Miguel Real (Quidnovi)].
As declarações de voto do júri serão aqui transcritas mais tarde. Agora, apenas a notícia, no mesmo momento em que está a ser comunicada ao autor e aos media.
Parabéns a Francisco José Viegas!

Pássaros e blogues (2)

Hoje, os pássaros não me acordaram. Mais cansaço meu, ou encontro deles numa outra praceta, que também têm os seus itinerários muito próprios. (Muito próprios? gosto de imaginar que sim.) Barulho longínquo de um alarme em fim de bateria. Mais perto, piar espaçado de pássaros novos - ninhos? Por certo. Mas invisíveis a quem está aqui apenas de passagem. Há uma poética das grnades cidades, eu sei. Senti-o mais noutras, talvez por Lisboa me ser sobretudo uma cidade instrumental. Excepto quando por uma fresta do Bairro Alto se vê o rio. Mas não tenho tempo de olhar. Fica o cheiro. No primeiro dia é tónico: cheiro pesado, óleo, água escura e flores fortes. Depois cansa e começo a desejar o cheiro do mar ao norte: sal áreo atravessado de pinheiros.
Sim, eu sei: cidade lavada de luz, e um cheiro diferente conforme o termo de comparação. A luz, ainda estou a aprendê-la. Arpad ajuda bastante. Mas o cheiro... Amanhã já estarei junto ao meu mar.

A Leitora, no seu infinito particular (XX)

Já tenho um rosto para pendurar nele o nome. Que continuará a ser Leitora, assim ela o quer, e eu o aceito. E que continuará a não escrever directamente aqui, como sempre me tinha dito desde o início e agora me reafirmou. Também ficou acordado que nunca falaremos dos contornos exactos da sua tese, que já está delineada e aceite, e nos entusiasma a ambos. E o tu apareceu naturalmente, nenhum de nós é tão snob ou tão tímido que o rejeitasse. Em mim, é apenas fruto da idade, na Leitora é fruto da sua geração. Mais alguma coisa? Pedimos um fino e um carioca de limão em chávena grande. Como seria de esperar, puseram-me o fino a mim. Era ao contrário.

Pássaros e blogues

Grande cidade, 6 da manhã. No prédio sonâmbulo, sou acordado pela algazarra dos pássaros. Aqui ouço-os, na minha aldeia já me fazem parte dos sonhos, ou do sono leve da madrugada, ou do acordar cedo pelo verão. Noutras circunstâncias teria abstraído de imediato, e tentado dormitar mais um pouco antes de todos os autoclismos começarem a funcionar. Mas lembro-me de há meses ter lido uma cena semelhante no Seta Despedida [não estou em condições de encontrar agora o link]. Acordada bem cedo pelos pássaros, a pergunta que depois sobrou, já pelo café da manhã: para onde foram os pássaros? Respondida por outro blogue alguns dias depois (Dias Felizes? já não tenho a certeza, sorry). Fico a pensar para onde irão os pássaros aqui. Aqui é Pontinha, uma das portas de Lisboa (pelo menos é o que a minha Tia diz). Irão para a beira-Tejo? Alguma mata perto? Não sei nada desta geografia, e na verdade não quero nem preciso saber. Mas a pergunta é poética, na medida em que é o seu tanto tristemente citadina. Na aldeia estão sempre lá, sítios diferentes conforme a hora do dia. Bom, já não vou dormir muito mais. Olha, calaram-se. Quer dizer, já se foram. Se fosse a eles, ia mesmo para a beira-Tejo. Mas eles é que sabem. E se tentasse dormir mais um pouco?

Sangam: confluência, ponto de encontro

Excelente forma de começar a semana. Melhor que prozac. E apetece ter lá estado, May 23, 2004, at Lobero Theatre, Santa Barbara, a homenagear esse imenso baterista que foi Billy Higgins, porque o diálogo rítmico entre Zakir Hussain e Eric Harland é por vezes incendiário, não se sabe quase quem “bate” em quê (tabla, bateria, outras coisas percutivas), e de certeza que os corpos falaram alto — e que sorriso teria Lloyd ao escutá-los? que corpo teria Lloyd ao entrar nestas danças, tão livre e tão guiado ao mesmo tempo?

PS: se me virem muito ritmicamente zen, já sabem do que é...

Tudo boas notícias

O template, que até me faz inveja, e a companhia, que logo se verá (eu sei que não é muito cavalheiro, mas é justo, e eu já estou naquela idade em que — adiante). Subscrevo, como qualidade e destino bloguístico, "a absoluta falta de rumo". Boas derivas!..

Claro que serve,

obrigado. A análise — e há aí muita mais matéria do que possa imaginar-se à primeira vista — fica para quem se queira deveras aventurar pela metablogosfera.
Um pouco à margem — que é como quem diz... —, tirando a foto 10 da sua Sevigny, por causa da torção do braço e do anel dos dedos, nenhuma delas chega aos calcanhares nus do The bunny effect. Que mesmo assim eu reconstruo só com os pés e a relva molhada. A beleza é uma coisa muito curiosa (perigosa?) — e imprevisível. Mas não seria eu a desejar-lhe a ausência dela só pelo prazer de o ter por cá — isso nunca.

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Havia aquele escritor que quando lhe perguntavam se por acaso já tinha lido aquele livro do seu colega, respondia sempre muito amavelmente que não era um leitor, mas precisamente um escritor... Creio que um bloguista é o que escreve blogues, e não propriamente aquele que os lê, embora neste particular as coisas sejam um pouco menos dissociáveis. Em todo o caso, há situações de trabalho tais em que mal dá para fazer os posts, quanto mais para ler os dos outros. Abertos em abas, e numa rápida ronda nocturna, olhos já piscos, aqui vai:

O Papa em Auschwitz. O discurso do Papa teve eco positivo em muitos não-crentes e ateus. Confesso que fiquei com ambos os pés atrás. E não foi por aquilo que o Rui Tavares disse ontem no Público (excelente, aliás), porque não tinha sequer tido tempo para ir ler que mais o Papa dissera. Mas nestas coisas, o que se diz não é separável de quem o diz: o tom, performances anteriores, o lugar que isso tem na doutrina de quem assim se pronuncia. E para o actual Papa, que se afasta silenciosamente do populismo do anterior, e que vê a oportunidade da Igreja num combate firme contra aspectos centrais da cultura contemporânea, a interrogação sobre o silêncio de Deus é apenas o passo retórico para criar o espaço de uma fé acima de qualquer dúvida ou interrogação demasiado humana. Uma fé que ouve a incerteza humana, mas tem uma resposta clara que afinal não dá lugar a qualquer incerteza. Em nenhum momento o Papa deixou de ser o Papa, para ser simplesmente um ser humano aflito e perdido. Toda a encenação foi a do poder do Papa, a do poder até de reproduzir as questões aparentemente mais difíceis, mas sempre circunscritas pelo poder de quem as enuncia. E o poder não engana. Não raro engana-se, mas não engana.

Matar e nascer um blog. Ora aí está mais um daqueles temas que se não dá uma tese, dará pelo menos um capítulo. Um belo dia, sem que nada o fizesse prever, um autor mata discretamente o seu blog e renasce ali um pouco mais ao lado com outro. Alguém vá já entrevistar o Ricardo Gross, para saber como e porquê se passa do Babugem para os Devaneios. E se ninguém está para aí virado, o Ricardo Gross que se auto-entreviste, que a coisa, pela minha experiência, não costuma correr mal. Eu, pelo menos, gostava de saber (será curiosidade a mais?..).

Há por aí algum editor? Era bom que algum fizesse já um contrato com o Luís Carmelo para a série do tom dos blogues, porque aquilo, tão eminentemente semiótico, para se ler direito e pensado, tem de se editar, o que já retira metade do gozo. Agora em livro, recuperava o interesse que deveras tem.

Pedido de um tipo que até nem usa óculos. Fazia o obséquio de aumentar um pouquinho o tamanho da letra? Tenho-me aguentado até aqui sem dizer nada, mas acho que a vista se está a ressentir do esforço. Obrigado.

(instante cinco) impossível sair daqui

Ocasião excepcional
para, por um instante, recordar
o que se conversou
junto do candeeiro apagado;

pelo menos uma vez,
tropeçar na pedra,
molhar-se na chuva,
perder as chaves na relva;

seguir com o olhar uma faísca no vento

e sem parar algo de importante
não saber.

Wislawa Szymborska, Instantes

(instante quatro) sair daqui, sair daqui

A alma vai-se tendo.
Ninguém a tem constantemente
nem para sempre.

(...)

Alegria e tristeza
não são para ela sentimentos distintos.
Apenas na ligação dos dois
está ela ao nosso lado.

Wislawa Szymborska, Instante

Very short

Não me escrevas mais, jamais, exigiu ele. Ela obedeceu.

A very short story

Não me escrevas mais, jamais, exigiu ele. Ela obedeceu. E começou a escrever contos breves.

Short story

Não me escrevas mais, jamais, exigiu ele. Ela obedeceu. E escreveu um romance, com o cuidado de ele não ser nem personagem nem figurante.

Double order

Não me escrevas mais, jamais, exigiu ele. Ela pensou que um dia ele talvez não fosse capaz de cumprir o que nessa exigência o obrigava também a ele. Mas não disse nada, era uma rapariga que sabia que o mundo era indiferente a essas falhas.

Jump to a conclusion

Não me escrevas mais, jamais, exigiu ele. Ela pensou que todas as rimas internas são precipitadas, e que é preciso ouvir melhor. Mas não disse nada, era uma rapariga que sabia da inutilidade dos avisos que não se aprendem por experiência própria.

Ah, o verão...

Sair daqui, sair daqui...

Código, sintomas, indiferença

Mais de metade da turma jurava a pés juntos que O Código Da Vinci provava que Jesus tinha casado com Madalena, etc e tal. E estava inteiramente disposta a tirar satisfações ao padre da paróquia sobre o escândalo de um segredo destes escondido durante dois mil anos. A outra metade ou não tinha visto ou tanto lhe fazia, umas porque acreditavam, independentemente de tudo, outras porque não acreditavam, independentemente de tudo.
Lá fiz o meu número de professor: a incerteza histórica, a probabilidade histórica, a dimensão ficcional, o filme e o livro como sintomas de questões não-resolvidas da contemporaneidade. No fim, encolher de ombros e regresso à indiferença. Moral da história: nestas coisas da religião (e não só, parece-me), a guerra é sempre de um absoluto contra outro absoluto, o pensamento da incerteza mobiliza apenas uns poucos.