Ibsen segundo Savinio e volta: primeiro excurso

Vida de Henrik Ibsen foi lido no comboio, na última viagem a Lisboa. Isto não é importante, mas é o género de coisas empíricas que ajuda a contextualizar o não sei o quê de algumas leituras. O meio de transporte que é a leitura, por exemplo. Mas teria de dar uma grande volta para o dizer sem ser em chave impressionista ou sibilina, e sinceramente não só não me apetece como tenho ainda algumas coisas para “domingar” antes de enfrentar o Portugal vs Holanda mais logo. Diria apenas que há livros que li nos comboios e cujo acto físico de leitura relembro como se fosse hoje. Dois sobretudo, sobre todos, a vários anos de distância entre si: Um outro mar, de Cláudio Magris, e O mesmo mar, de Amos Oz. Que quero dizer com acto físico de leitura? Que o ritmo de leitura se entrecruzou ao ritmo do comboio e do passar da paisagem e da deslocação para outro lugar. E que não sabendo nunca por que se vai de um lugar a outro, a leitura, nestes casos, não só preenche as razões que não temos como desloca as razões que temos. Sabe-se como se vai de um lugar ao outro: de comboio e lendo, por exemplo; de carro e ouvindo música, é outro exemplo possível. Sabe-se a que se vai: fazer isto ou aquilo, ou mesmo isto e aquilo e ainda mais outra coisa. Mas nunca se sabe por que se vai: que vida diferente ou igual nos espera ou não, neste momento e não em outro, e sequer se o teremos compreendido na volta. A leitura, tendo-se tornado a própria viagem, dispõe-nos a re-ler, isto é, a viver num ritmo que não é bem o nosso, ou que não conhecíamos como nosso, mas estava dentro dele e se torna visível agora, até de todo se voltar a confundir connosco. Como quando alguém vem ao nosso encontro, e em vez de olharmos o rosto que se aproxima olhamos os pés que se deslocam. A pessoa que assim chega a nós é um pouco diferente, mas estava toda dentro da pessoa que conhecíamos. Nós é que não a sabíamos. E quando a acabarmos de saber, conheceremos uma pessoa diferente, embora pudéssemos dizer que conhecemos apenas mais da pessoa que já conhecíamos. Mas nunca se conhece apenas mais. Nunca se acumula, nestas coisas — reestrutura-se. Nunca apenas mais uma viagem, mas uma vida imperceptivelmente diferente nessa viagem. A vida de Henrik Ibsen? De Alberto Savinio? A minha? Poderia tentar responder. E classicamente, dizer de cada uma à vez, e da mistura das três, e do ponto em que as quatro respostas seriam rigorosamente irrelevantes. Isso é a vida, e isso não esgota a vida. Continuaremos, portanto.

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