Os trabalhos e os dias (12)

Uma declaração de voto
Longe de Manaus é um romance policial que não é policial. Como em todo o romance policial, a ordem do mundo é rompida: há crimes e suspeitos; mas ao contrário das regras do género, a ordem não é restabelecida: a investigação não apura uma verdade, limita-se a confirmar incertezas várias que quase configuram uma decepção metafísica.
Este mundo partido, sendo o mundo tout court, é desde logo, e com uma acuidade inteiramente sociológica se não fosse reinvenção literária, um Portugal contemporâneo de onde as personagens vão desaparecendo porque engolidas por um passado traumático, em si mesmo um crime maior porque silenciado. A guerra de África, a emigração para o Brasil, a perseguição dos judeus, mas também, no pós 25 de Abril, novas públicas virtudes e vícios já nem tanto privados, fazem de Longe de Manaus um romance onde se investiga, com os meios que ao romance assistem, o medo e uma certa atmosfera cinzenta, opressiva, que difusamente caracterizam a contemporaneidade portuguesa.
Disse com os meios que ao romance assistem, para poder agora dizer que o maior conseguimento literário de Longe de Manaus é a sua falsa legibilidade. Solidamente ancorado numa história que não escamoteia peripécias nem promessas de desenlace a contento dos arquétipos do género, as digressões, as enumerações, os apontamentos poéticos e reflexivos sem uma palavra a mais que seja, vão adensando imperceptivelmente o romance, até ser já demasiado tarde para abandonar uma obra que afinal nada mais tem para nos oferecer senão aquilo de que é feita toda a literatura que deveras interessa: perguntas sem resposta, ironia acerada sobre um mundo que vai sempre ficando mais longe do encantamento com que um dia nos prometeu a vida, e um restos discretos de ternura para a passagem do tempo. Longe de Manaus, por certo, mas perto do que é ainda possível.

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