Os trabalhos e os dias (13)

De coisa mais ou menos vaga para daqui a uma década, Bolonha passou de repente a urgência “para ontem” e caderno de encargos, o mais tardar, para se resolver no próximo ano. A sucessão de legislação e de normas técnicas foi coisa bem portuguesa: o prazo para reformulação de cursos e propostas de novos curso acabava em 31 de Março, e foi nessa data publicado em DR a última das normas técnicas para a instrução dos processos (que oficiosamente as instituições tinham recebido uma semana antes, e que oficialmente continha umas pequenas diferenças sem importância...). Entregues os dossiers, as instituições estão a responder, em contra-relógio, a pedidos de reformulações ou de acrescentos técnicos solicitados pelo Ministério. Eu até nem queria muito falar sobre o assunto, mas a verdade é que tem sido uma parte substancial e tremendamente desinteressante, salvo um ou outro aspecto, destes “trabalhos a dias”. Assim, decidi apanhar a boleia do post bolonhês de Miguel Vale de Almeida, que subscrevo por inteiro, e acrescentar-lhe umas notas “laterais”, a ver se “retiro isto do sistema”, como dizia o outro, e passo a coisas mais interessantes:

1. Bolonha foi e é uma questão política (possibilidade de o espaço europeu de ensino superior competir com o americano, o que em si mesmo tem muitas outras questões neo-liberais implícitas), e como questão política até estava disposto a discutir a bondade dos seus objectivos e as implicações daí decorrentes. Ter transformado Bolonha numa questão aparentemente científico-pedagógica, com largas discussões sobre combinatórias (3+1, 3+2, 4+1, 5 integrando 3+2) foi a prova final de que os governos portugueses consideram a) que o espaço público português não tem maturidade para a discussão eminentemente política, mas apenas para questões paroquiais de especialistas e b) que o espaço público daquela “classe” que, pela sua formação e responsabilidade, deveria constituir uma elite capaz de distinguir o que em cada caso está em causa, não foi capaz de o fazer, pelo menos na sua larga maioria.

2. Que tenha de ter sido a quantificação do trabalho do aluno a alertar para aquela miudeza de que há professores que exigem mundos e fundos de trabalho aos seus alunos, porque a sua disciplina “é que é”, só mostra o autismo e a impunidade em que descambou a “autonomia científica e pedagógica” do professor na orientação da disciplina a seu cargo — autonomia que, em sede teórica, e para que não haja mal-entendidos, defendo com intransigência, mas que tem de ser negociada e argumentada na colegialidade dos órgãos científicos e pedagógicos.

3. A burocratização dos ECTS confirmou os refinamentos perversos que eram expectáveis. Algumas universidades receberam fundos para promover o processo e fizeram-no de forma “célere e exemplar”: sem inquéritos aos alunos, sem ouvir os professores, numa regra de três simples (tinha tantos créditos num total de x, passa a ter tantos ECTS num total de y), que depois as administrações limaram a “olho”, acrescentando mais uns “pozinhos” àquelas disciplinas a que todos chamam “cadeirões”. Eu nem consigo dizer que isto constitui propriamente uma fraude, porque não vi maneira, mesmo tendo seguido todos os trâmites razoáveis, de chegar a conclusões equilibradas que não repusessem, mais ou menos, os valores a que se chegou pela regra de três simples. A ver se nos entendemos: os anteriores currículos não foram feitos propriamente por extraterrestres, mas por nós próprios...

4. A generalidade das licenciaturas passará a três anos, e essa redução, como diz bem MVA, faz-se muito à custa do desaparecimento das Ciências Sociais do currículo. Mas esta é a primeira etapa. A segunda etapa, é que a entrada no mercado de trabalho, para as licenciaturas específicas das ciências sociais, se fará “tipicamente”, como agora se diz, com estes três anos, ficando a “obrigatoriedade” dos masters para outras áreas.

5. Quanto à competitividade, há um problema anterior que se deveria colocar. Entre instituições de ensino público, faz sentido haver competitividade sem antes se ter definido uma rede que racionalize o erário que o Estado atribui para o ensino superior público? Vejam-se os anúncios que universidades e politécnicos públicos fazem nos jornais, o que gastam na promoção das instituições e dos seus cursos, e temos este belo paradoxo: o Estado paga para que as instituições disputem entre si a realização de um bem público, o mesmo Estado que deveria ter criado apenas as instituições necessárias à realização desse bem público. Mas a política, quanto a “esta matéria”, como também se diz, tem sido a de “deixar funcionar o mercado”: no próximo ano, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior nem precisará do relatório de avaliação da OCDE, bastar-lhe-á varrer os cacos das várias instituições que se partirão por falta de alunos, a começar pela maioria dos politécnicos. Gostava muito de estar enganado, mas a baixa demográfica, a perda de 40% dos alunos entre o 10º e o 12º ano, e o financiamento indexado ao número de alunos, não darão outro resultado. Este ano já foi de alarme, o próximo Setembro será de rupturas. Nenhuma assimetria se corrigirá, recursos humanos altamente qualificados serão jogados fora com a água do banho, e haverá certamente gente a dizer que a rede se constituiu por uma muito salutar “selecção natural”. A opinião pública ficará descansada, e o Ministro Mariano Gago, que grandemente aprecio mas de quem “nesta matéria” esperava bastante mais, não terá tido necessidade de medidas políticas saneadoras, reformistas ou o que quer que seja. Fará o papel de um coveiro discreto, no funeral de uma morte anunciada há muito. Pensei que a política fosse outra coisa, mas eu engano-me muito, ou não fosse dessa área acientífica que é a literatura...

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