Multiplex 14

François Ozon, Le temps qui reste
— Em resumo, indecisa. Não sei se tome o filme pela sua linguagem privada, porque Ozon é muito idiossincrático, e a questão do desaparecimento, tal como ele a filma desde Sous le sable, é um território muito pessoal, ou se veja o lado da linguagem pública, um certo silenciamento da morte nas sociedades contemporâneas, a compulsão privada a que a morte, hoje, parece obrigar, e que de resto a personagem vive com alguma naturalidade: isso de não contar a ninguém, família, amante, amigos, a não ser à avó, porque também ela está perto da morte.
— E porque não as duas coisas? Mas eu percebo-te. E alguma coisa no filme me parece reacção “adolescente” à morte. Ele não conta, porque pressupõe que ninguém o compreenderá. Mas nem sequer tenta, o que talvez diga que projecta nos outros a sua própria revolta. Romantismo de ambos, personagem e realizador, que também em nenhum momento deixa entender que os outros pudessem entender, apesar da cena com o pai e, mais tarde, com a irmã.
— De resto, sobriedade absoluta e um Melvil Poupad absolutamente magnífico.
— Arrepiante mesmo, Leitora. E para além disso, conseguir filmar a magreza de um actor como avanço da morte, até terminar cadáver anónimo numa praia, não é para qualquer um.
— Dificilmente esquecerei essa cena, é verdade.
— Que fiquei com a impressão de que remete para o Cristo morto de Holbein, o tal de que Dostoievski disse que ao vê-lo era praticamente impossível acreditar na ressurreição.
— Isso já são coisas tuas, Luís. Se calhar todo o corpo jazente, ocidentalmente falando, é ainda memória crística. Mas se ao vê-lo era impossível acreditar na ressurreição, bem que pode pertencer ao filme...

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