Caminhos de um diálogo (um pouco menos) apócrifo


I - Introduzindo (clemência e compreensão)
— Ajude-me aqui a responder ao João Paulo Sousa.
— Já não era sem tempo!
— Isto dos noventa romances mais as teses mais as burocracias académicas...
— Mais os filmes e mais tudo o que não vem para o blogue... Pois, tudo isso se compreende muito bem, mas a gentileza e o gosto de pensar, sobretudo o gosto de pensar, que era o que você invocava...
— E invoco... e invoco...

II- Entrando no assunto (erros meus, má fortuna)
— Em que posso ajudar, então?
— Acho que cometi um erro, ou pelo menos uma imprecisão, ou não me expliquei claramente no meu texto anterior.
— Acontece. É por isso que se escreve e re-escreve e se fazem adendas. E qual o erro ou imprecisão ou falta de clareza?
— Quando eu disse que talvez a fotografia não permita, hoje, as afecções que o JPS busca, não estava a falar da fotografia em geral, mas daquele tipo de fotografia praticada por Nozolino.
— A preto e branco?
— Não, já não é a questão do preto do branco. O que eu tinha em mente é o tipo de fotografia em que o autor não intervém depois da chapa batida, como se dizia antigamente.
— De facto, isso não ficou nada claro. E só vem dizê-lo agora?..
— Pois é, Leitora, pois é...

III- Adensando o assunto (pois, como é que sabe?..)
— E ainda por cima, como é que sabe que Nozolino ou outros não intervêm no processo depois da chapa batida?
— Realmente não sei, e não tenho nem conhecimentos técnicos nem conhecimento dos processos que esses autores usam para poder dizê-lo com certeza. Ponho-me simplesmente do lado do espectador mediano: todos os artifícios que distingo naquelas fotografias, dando de barato que se pode chamar artifício ao preto e branco, à escolha do cenário, do ângulo, mesmo à composição deliberada de certos ambientes, às lentes e aos seus efeitos na escala de cinzentos, tudo isso é antes da chapa batida.
— Quer dizer, não vê nessas fotografias nada que indique sem qualquer sombra de dúvida que houve uma intervenção depois da chapa batida.
— Isso mesmo. Coisa que não acontece ao ver as fotografias de Robert Frank. É indiscutível que houve intervenção depois da chapa batida, e é essa intervenção que provoca a descontinuidade e a fragmentaridade a que JPS é tão sensível.

IV- Derivando do assunto (a literatura, claro...)
— E você não é sensível a isso? A essa descontinuidade, a essa fragmentaridade?
— Oh, mas a Leitora sabe que sim, sabe que os meus eleitos não fazem outra coisa senão isso: o Raul Brandão de Húmus, o Vergílio Ferreira pós-Aparição, o último Lobo Antunes, as...
— ... mas isso é literatura, não é fotografia!
— ... pois, e você interrompeu-me quando ia falar das minhas escritoras de eleição. Mas adiante. Claro, é literatura. E uma parte fundamental das minhas afecções é de lá que vem. E onde eu quero chegar é a isto. Vamos pôr as coisas em termos redondos: uma história bem contada, em literatura, não me interessa nada, já não tenho pachorra, etc e tal. Já não digo o mesmo num filme, porque concedo a alguns filmes funções de entretenimento inteligente. Mas a literatura de entretenimento inteligente, qualquer coisa como Equador, sou incapaz de ler, irrita-me pelo tempo que leva, pelo esforço que exige e que não é compensado. Ver um filme é bem mais relaxante, desde que não seja estúpido.

V- Voltando ao assunto num patamar mais alto (chapa batida)
— E a fotografia, no meio disso?..
— Pois... A fotografia, aquele tipo de fotografia sem intervenção depois da chapa batida, mantém para mim o fascínio de a arte ser ainda possível de uma forma quase-directa, maximamente dependente do real, ou da convenção do real...
— ... ah, estava a ver se não fazia a ressalva...
— ... é o que de mais análogo encontro com “a marquesa saiu às cinco horas”. Não tenho saudades nenhumas desses livros, mas tenho um fascínio imenso por a fotografia poder ainda partir dessa possibilidade de convenção e nos fazer pensar através do desajuste silencioso que ela encerra. Pensar sem ser necessário impor-nos uma descontinuidade de permeio que nos obrigue a isso, como a montagem de Robert Frank.
— Quer dizer, dá à fotografia, ou a esse tipo de fotografia sem intervenção depois da chapa batida, o lugar da inocência perdida da literatura. É isso?
— Qualquer coisa assim, Leitora. Sabendo que nunca houve inocência nenhuma, ou se a houve só demos por ela depois de definitivamente perdida.
— Pois... Quer dizer, reclama como virtude aquilo a que no início do seu diálogo com o JPS chamou o pecado mortal da fotografia: o julgar-se que ela é realismo transparente.
— Digamos que reclamo e sou sensível a essa convenção de realismo com a distância de se saber que não é nada transparente, mas sem ter de lutar com o obstáculo da descontinuidade...
— Lutar?!.. Fórmula estranha, para quem invoca o prazer de pensar.

VI- Aprofundando uma parte do assunto (especulando, é mais isso...)
— A Leitora não perdoa nada. Expliquei-me mal.
— Está-se a ver que sim...
— Concedo à fotografia a possibilidade de me afectar para aquém de qualquer narrativa. É uma possibilidade que decorre de um meio técnico e da sua ligação à captação do instante.
— Ligação mítica...
— Claro, Leitora, mas funciona ainda, e construiu as afecções próprias a esse funcionamento. Essas afecções são reais. Não são uma explicação nem directamente uma interrogação, estão para cá disso.
— Mas suscitam pensamento.
— Como qualquer afecção, na medida em que formos movidos pelo desejo de conhecimento. Mas não são desde logo afecções narrativizadas.
— Estou a ver onde quer chegar. O JPS liga sempre a descontinuidade a uma estratégia que “coloca a narratividade em fundo na apresentação de uma imagem, quer dizer, enquadra-a numa sequência hipotética, entre o que lhe antecede e o que lhe sucede, ainda que estes elementos possam não estar visíveis ou se apresentem sem um nexo causal evidente”.
— Ora nem mais, Leitora. E acrescenta que é esta “possibilidade de separar e reunir, provocando, através dessa reunião, uma sensação de estranheza que deverá activar o raciocínio daquele que contempla as imagens”. Eu diria que o JPS, na manifestação dos seus gostos e das suas afecções, é particularmente sensível à arte sub specie narrativa.
— Narrativa descontínua, porém.
— Claro, narrativa descontínua, mas já em marcha, por assim dizer. Note que, num certo sentido, digamos que num sentido ricoeuriano, para falar de alguém que resumiu amplamente estas questões, a narratividade é quase uma invariante antropológica da constituição da cultura, isto é, da sua produção e recepção. E claro que é difícil não se estar de acordo com isso. E o JPS tem toda a razão quando procura na descontinuidade aquilo que pode manter a abertura da narrativa, o seu devir, seja qual for a forma artística.

VII- A ver se se chega a alguma conclusão (e quase entra o Groucho...)
— E então o Luís procura o quê?
— Ser apanhado pelo fascínio e ao descolar dele ficar nas mãos com uma narrativa a ponto de começar.
— Hum... demasiado metafísico, não acha?
— Pensei que a Leitora fosse dizer demasiado psicanalítico...
— Mas para si não são a mesma coisa?
— Pois são, pois são. Lá se vai para o lugar de deus, a ponto de começar.
— Um deus com minúsculas...
— Como tudo o que é finitamente humano.
— Sabe o que eu acho? Se o Groucho aqui estivesse, era esta a altura em que ele lhe diria que, para afecções desse calibre, o melhor era apanhar um murro nos queixos.
— Talvez, talvez... Mas é interessante que tenha falado disso, porque ainda há dias dei com a cabeça numa estante e o que me veio dos fundos da dor foram imagens soltas, nada de narrativas ou bocado de narrativas.
— Mas imagens descontínuas, forçosamente.
— Forçosamente. Mas não ligadas entre si pela descontinuidade, era o que queria dizer. Afecções em estado puro. E bruto.
— E espera da fotografia, ou de alguma fotografia, essas afecções sem a dor física da cabeçada na estante.
— De preferência.
— Percebo perfeitamente essa preferência... é melhor bater na chapa batida, pois então!
— Ora aí está, Leitora. Quase estava tentado a dizer, mas já ia narrativizar muito a metáfora, que se faria assim do som ao sentido.

VIII- Acabando de qualquer maneira (mas ele há outras?!..)
— De facto, seria narrativizar muito.
— Pois... Mas se olhar bem para a fotografia lá de cima...
— ...banal, fotojornalismo...
— ...claro, mas ouve-se o comboio e o som animal dos seus olhos, e há uma história a ponto de começar.
— E é o JPS quem entende a fotografia sub specie narrativa!..
— Pois, mas aqui é a ponto de começar, e o que lá há é a coisa mais anódina deste mundo, que é precisamente haver mundo anódino.
— Bom, o JPS que diga qualquer coisa, ou a Silvina e o Adolf Loos na descontinuidade que lhes deu, que eu já não consigo ajudar mais aqui...

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