Já reparou que eu podia passar por si sem a reconhecer? Mas que conversa, a esta hora da noite... Mas já reparou que isso podia acontecer, Leitora? Não me diga que quer que lhe mande uma fotografia?.. Não será preciso, não se preocupe. Mas não acha que esta assimetria tem qualquer coisa de... não sei como classificá-la... qualquer coisa de doloroso acerca da minha condição... Como o Luís dizia ao Groucho, há coisas que são simplesmente empíricas, e esta é uma delas. Assisti a duas conferências suas, talvez o reconhecesse na rua, se me cruzasse consigo; mas não há nenhuma razão para que o Luís se lembre de uma jovem igual a tantas outras que lhe pôs uma pergunta. O doloroso deve vir de outro lado. É sempre uma hipótese. Talvez de todos estes romances que vou lendo. A grande maioria talvez ganhasse muito em transformar-se em diário... ou em blog, já agora. Mas ganharia o quê? Qualquer coisa que eu diria que é da ordem de uma espécie de ecologia da mente. Deixar cair o disfarce, o como se, a pretensão: se é para contar a sua própria visão do mundo, ou a sua vidinha, contem de uma vez, não finjam que são outros. Mas não vê que isso é o mais difícil? Aceitá-lo seria saber sem subterfúgios que não haverá lugar na história para nós, que já não há lugar na história para nós; fingirmo-nos outro é elevar a importância de nós à possibilidade do universal, ou pelo menos do exemplo. Hi, Leitora, grande tirada... Mas olhe que as palavras são quase suas, mais do que minhas. Se calhar até é isso... Isso o quê, Leitora? As palavras serem mais suas do que minhas. Dói-lhe isso: esses romances não chegarem sequer a ser a nota de rodapé da história, e no entanto haver essa loucura mansa de os escrever. Noites a fio, podemos imaginá-lo. Tirando à vida, pensando que se lhe acrescenta. Sim, talvez... Mas olhe, por falar nisso, não serão horas de ir dormir? Atente bem na sua provecta idade, e no avisado do título: os trabalhos e os dias. Os dias, certo?.. E depois há-de-me explicar que obsessão é essa com as Variações Goldberg. Pois sim, Leitora, na medida em que você me explique o seu álbum de fotografias... Não é a mesma coisa, não é uma troca justa. Como é que sabe, se estamos ambos a perguntar?..
Os trabalhos e os dias (3)
Luís Mourão
12.4.06 |
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