Meu caro João Paulo Sousa
Retomemos o nosso diálogo, com os vagares de quem se confronta com questões sem solução, ou para sermos mais precisos, com questões que não precisam de solução.
As nossas posições estão agora mais claras, e o núcleo do dissenso resume-se a uma posição de espectador perante a exposição de Nozolino. Ou seja, afinal não dissentimos em termos de teoria (princípios e fins da fotografia, se se podem usar expressões tão enfáticas quanto estas em posts; efeitos da estética do preto e branco, questão da neutralidade, etc), apenas manifestamos que a exposição nos afectou de forma diferente: para si, os meios usados falharam por completo; para mim, falharam parcialmente, e não pelas razões que para si conduziram à falha.
Postas as coisas nestes termos, o diálogo muda bastante de rumo, torna-se mais pessoal (não necessariamente mais íntimo nem privado, mas podendo também passar por aí) e mais obviamente infinito.
A situação poderia ser resumida com vantagem por aquele cartaz que durante muitos anos habitou o Cinema Quarteto (quando o Quarteto era o centro cinéfilo por excelência), e que transcrevia um texto de... (umas vezes lembro-me de quem, agora não, e já há um certo tempo que não) que dizia mais ou menos isto: um crítico de cinema devia começar por dizer quem era, o que tinha lido, como se formara, quais eram os seus gostos noutros campos, quais os seus traumas e manias (isto não estava lá, de certeza, mas a coisa podia chegar até aí), e depois bastava-lhe dizer o título do filme e se tinha gostado ou não.
Essa citação sempre me pareceu cómica, equívoca e tremendamente profunda.
Cómica, porque postas as coisas assim, o interessante, sem dúvida, seria o crítico dizer-nos o título do filme e nós podermos deduzir correctamente se ele gostou ou não — mas não será propriamente para isso que alguém vai ao cinema, pois não?
Equívoca, porque se fazia tábua rasa da constituição política da subjectividade (e portanto, do seu devir), ao mesmo tempo que se fazia também tábua rasa da possibilidade de um filme mudar o nosso modo de ver e pensar.
Mas tremendamente profunda porque também não se pode escamotear essa possibilidade de um desacordo de juízo de gosto não advir de diferenças de posicionamento teórico e estético, mas de uma diferente constituição do campo das “afecções” a que seremos sensíveis (constituição sempre momentânea, e por isso infixável de uma vez por todas).
É por esse campo de afecções que eu poderei explicar que ambos concordemos acerca do que está a acontecer nas fotografias de Nozolino — usando as suas palavras: “a desnaturalização conferida às imagens pelo uso do preto e do branco, aproxima-as mais de uma construção abstracta do que de uma apresentação da dor do mundo” — e discordemos dos seus efeitos: para o JPS, disso decorre “um défice de interpelação ao espectador nas fotografias de Nozolino”; para mim, disso decorre a interpelação mais funda que essas fotografias fazem ao espectador: diferir a apresentação da dor através de um processo de abstracção representativa que não consegue apagar o rasto da empiria e permite que ela accione mecanismos de afecção que diria “secundários” (e deixo o termo na zona em que ele é apropriável pelas descrições caracteriológicas mais psicologistas onde, sublinho, nunca se trata de hierarquizar mas de indirectamente mostrar que somos de “uma” certa maneira, e não de “todas” as maneiras).
A mesma questão se poderia colocar acerca do conceito deleuziano de imagem-cristal. Desde logo, como o JPS obviamente reconhece, a descontinuidade possível no cinema entre a “imagem visual” e a “imagem sonora” coloca-se de uma forma diferente na fotografia — mas não será significativo que o JPS vá buscar a analogia ao cinema, onde esse processo, quando acontece, se torna imediato e inequívoco? E não será significativo que o exemplo seguinte seja o uso da fotografia nos romances de Sebald, onde temos o mesmo processo imediato e inequívoco de uma não relação entre o texto e as imagens? E, finalmente, não será significativo que o JPS não dê nenhum exemplo que diga unicamente respeito à fotografia considerada apenas por “si mesma”? Sublinho, de novo: significativo não de nenhum erro teórico, mas de uma diferente constituição de um campo de afecções? Significativo de que talvez a fotografia não permita, hoje, as afecções que o JPS busca?
Finalmente: se este meu raciocínio tiver ponta de validade, a questão não é tanto dos sujeitos LM e JPS, mas da constituição das subjectividades hoje possíveis pelo campo de afectos à nossa disposição (ainda que, como é óbvio, não nos constituamos apenas por aquilo que está à nossa disposição). Somos sempre menos únicos do que o nosso pobre ego pretende. E é por isso que pensamos. Mas isso, a bem dizer, é já outra história.
Saudações amigas.
Caminhos do espectador
Luís Mourão
3.4.06 |
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