— Eu vi dois filmes, Leitora. Dois filmes com imensas zonas de sobreposição, e portanto com uma fronteira difícil de definir, mas mesmo assim dois filmes.
— Refere-se ao facto de Cronenberg ter sido chamado pelos estúdios a realizar um projecto que já estava praticamente desenhado?
— Isso e o facto de, em várias entrevistas, Cronenberg nos ir dizendo o que de concreto acrescentou ao projecto. Por exemplo, a sexualidade do casal. A primeira cena, que é do domínio de uma animalidade irónica e feliz, e a segunda, que é a experiência vertiginosa de uma violência intrínseca ao amor.
— Ao erotismo, antes de mais...
— Não, Leitora, ao amor, antes de mais. O erotismo é talvez o terreno onde isso é mais visível num casal, desde que a incomunicabilidade não os devore. Mas o que está em jogo, nesse momento da história do casal, é precisamente incorporar a violência nessa história: a violência dela, como resposta ao passado que ele tinha escondido, e a violência dele, como capacidade de aceitar ser dominado pelo amor dela.
— Desfie lá isso um pouco, a ver se concordo...
— Nessa cena, quem domina é ela, é ela quem busca experimentar esse lado negro que ele escondeu. Na prática, ela viola-o, mas ele consente. E esse consentimento é que diz que ele procura finalmente o amor dela. Em desespero, em situação limite, é certo, mas talvez o amor muitas vezes venha assim.
— Mas eles já se amavam. Ele tinha visto esse amor no olhar dela, é isso que ele lhe diz na primeira cena sexual do filme.
— Sim, mas ela não o tinha ainda visto à luz do seu passado. Não por culpa dela, mas por medo dele. E por mais legítimo que fosse esse medo, a verdade é que o segredo, uma vez descoberto, poria tudo em causa, haveria que recomeçar ou perder tudo.
— Mas porque diz que essa aceitação dele é violência?
— Lembra-se que ele diz que passou três anos no deserto, para se livrar de quem era?
— Sim, muito religioso.
— Claro. É uma prova dura, porque alguém perdoar-se a si próprio com nítido conhecimento de causa, não é fácil. Mas o mais difícil é aceitar que alguém nos julgue sem nós querermos estabelecer o caminho do juízo. Violência contra o nosso desejo de domínio, de configurarmos os termos em que seremos lidos pelo outro. Mas é isso que ele faz quando consente em ser violado por ela. Não sabe o que daí advirá. Não é o juízo do tribunal, em que nós, como sociedade, fazemos as regras que nos irão julgar; é o juízo do amor, em que tudo depende do outro.
— Da arbitrariedade do outro?!..
— Não exactamente. Do amor do outro. Podemos dizer que o amor do outro nos julgou mal, e poderemos até ter razão, mas isso não nos serve de muito, esse amor perdeu-se, e esse resultado é mais terrível do que termos razão.
— Percebo... No final dessa cena, ela cospe-lhe... Gesto terrível, mas purificador. Mas ele fica na dúvida se isso é o princípio do perdão.
— Qualquer homem nas suas condições ficaria, ou não? E porque achou o gesto purificador, Leitora?
— Ela tem de o abjurar para o poder reintegrar. Abjurar o homem não-violento que não foi capaz de lhe dar a sua verdade, para poder depois reintegrar a terrível verdade do seu passado.
— Também me parece. E penso que este conflito que rasga o interior de uma família, e a forma como isso se sutura, é não só o melhor do filme como aquilo em que Cronenberg é diferente de filmes anteriores. Mas é um filme dentro do filme. Ou para usar as suas palavras, Leitora, o filme que está psiquicamente certo.
— E que tem todos os actores psiquicamente certos, já agora.
— Sem dúvida. Sobretudo Vigo Mortensen e Maria Bello.
— Mas para si há um outro filme que não está assim tão certo...
— Pois...
Multiplex 6 (take 2)
Luís Mourão
20.4.06 |
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This entry was posted on 20.4.06
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