Multiplex 6 (take 3)

— Presumo, então, que o filme que não está tão certo seja o que já estava desenhado pelos estúdios quando convidaram Cronenberg.
— Provavelmente. Claro que Cronenberg defende o filme, por assim dizer. São também escolha sua os elementos gore que mostram os efeitos da violência e a dimensão paródica do encontro com o irmão, mas não vêm daí as minhas reticências maiores, embora as considere escolhas erradas.
— Penso que a sua questão era o subtexto político.
— Exacto. Há uma América interior, uma família feliz, uma comunidade conforme ao sonho americano. Num primeiro momento, quando percebemos que Tom não é quem afirma ser, ou que não é apenas quem afirma ser, pensamos que esse mito se vai desfazer.
— Ah, já estou a ver... O mito desfaz-se para se refazer em consciência. Tom irá usar de uma extrema violência, mas é uma violência defensiva e justificada, ele preserva o sonho americano que escolheu.
— Uma boa metáfora para a política da administração Bush, não é? Tom está na sua América e é atacado do exterior. A sua defesa, para ser eficaz, obriga-o a ir resolver o problema no exterior.
— Pois... Mas esse exterior é também o seu passado violento, injustificável. A metáfora tem alguns problemas de adaptação...
— Certo, Leitora. Mas não se esqueça que a administração Bush assumiu tacitamente alguns dos erros do passado, e também as tibiezas, e proclamou preto no branco que lhe competia, como potência, defender os seus interesses e levar a boa nova democrática a todo o mundo. O grande golpe estratégico dos neo-conservadores foi terem combinado, de forma clara, a lei do mais forte com a legitimidade da democracia. O que Tom nos diz é que matar custa, mas é necessário. E que matar contamina, mas que é possível a redenção. Daí a última cena, familiar no sentido mais americano e conservador do termo, porque religiosa: Tom é reintegrado por intersecção da filha-anjo, e no momento em que a família parece ir dizer a sua acção de graças antes da refeição. Bush é mais cow-boy do que isto, mas quando se pretende conduzir uma guerra com o mínimo de baixas americanas, é este regresso e esta reintegração que se pretende em última instância. Uma heroicidade sem festejo, porque se sabe do seu preço. Mas uma heroicidade que não vira a face àquilo que tem de ser feito...
— Não estou propriamente convencida... É verdade que a última cena, embora bela, tem uma religiosidade que me pareceu forçadamente pura. Mas creio que Cronenberg se deixou transportar pelo valor plástico da sequência: a família reunida à mesa, em postura de acção de graças, é mais a família que a religião. Aliás, a acção de graças é subentendida, não dita. E o perdão começa na filha, a mais inocente de todas as personagens, a que é alheia a qualquer juízo moral que não passe antes pelos seus afectos...
— Mas é isso, Leitora, os afectos do sonho americano, a sua reconstrução consciente, tanto mais conseguida quando essa consciência não deixa de ser legitimada pela alma inocente da filha.
— Custa-me imaginar um Cronenberg do lado de Bush...
— Mas também não digo isso. E sem entrarmos nos terrenos pantanosos da intencionalidade, talvez baste dizer que o problema aqui é que Cronenberg aceitou terminar sem ambiguidade, em pastoral de América profunda, uma história que, porque é de violência, tem um peso político incontornável.
— Essa da pastoral é um reenvio ao romance do Philip Roth?
— Que lhe parece, Leitora?
— Pois, Roth é outra coisa, não fica pedra sobre pedra. Ou neste caso, não fica comunidade ou paisagem a que possamos acolher-nos. Mas se põe as coisas assim, nenhum deste cinema vale um romance dele...
— Pois não... Mas o problema é que um romance não é um filme, e eu não passo sem a minha dose cinéfila.
— Nesse caso sofremos da mesma dependência. Imagine agora se eu nem sequer fosse Leitora...
— Esperemos que este não seja a véspera desse dia, nem a ante-véspera, nem...
— ... até amanhã... boas leituras para si, também...

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